sábado, 20 de julho de 1985

O Melão equilibrista

Em tempos, pertencendo à Vereação da Câmara Municipal de Lisboa, escrevi este texto para difusão restrita entre os membros daquele colégio autárquico. Passado tanto tempo já, e tratando-se de matéria tão simples, eles perdoar-me-ão, certamente, que lhe dê divulgação, porque poderá interessar a muitos leitores lisboetas. Apenas melhorei aqui ou ali a gramática, pois que era uma coisa escrita despreocupadamente, e refiz alguns desenhos para darem melhor reprodução no jornal.
 
Colegas Vereadores
 
Esta Câmara debruça-se permanentemente sobre problemas angustiantes e difíceis da Cidade. Problemas que nos esmagam e têm feito sofrer, como sabemos.
Também é verdade que tem sido gasto muitas vezes tempo com casos de somenos, questões e questiúnculas — porque negá-lo?
Sendo assim, não me sinto inibido quando me ocorre, quase por desfastio de tanta agrura, apresentar um problema perfeitamente secundário, longe das casas que caem, das famílias sem lar, dos milhões do défice, do trânsito insolúvel...
Nem sequer solicito deliberações ou discussão; só isso, que descanso!
É um simples desabafo de um fulano que profissionalmente esteve e eventualmente ainda está ligado às artes visuais, senhores Vereadores:
 
Eis aqui o emblema de uma Cidade ilustre, que faz 800 anos; emblema com raízes profundas na lenda, na História, no mito — tal como aparece na bandeira e nas publicações municipais.
 
 
Do lendário navio que, das praias do Sul, trouxe até ao Tejo as relíquias veneráveis de S. Vicente, acompanhado por dois corvos, resta hoje apenas isto: uma espécie de meio melão, esfaqueado por uma coisa que deve querer representar o leme (a bombordo?!), e onde dois passarões pretos parecem brincar ao balancé.
Em rigor, até, o emblema tal como está, teria mais piada se fosse móvel — corvo acima, corvo abaixo, corvo acima, corvo abaixo — subtil mas rica alusão aos avatares da governação municipal.
Assim:
 
 
Parece também ser do consenso geral que os barcos, usualmente, andam na água e não pairando sobre ela — a não ser que neste, o facto de transportar as relíquias do Santo permita uma cera levitação mística.
Mas se olharem para as costas das cadeiras da sala de sessões onde passamos longas horas (e esquecendo por agora a sua antipática peculiaridade de entalar os dedos a quem tenta levantar-se da sua) verão, talhado na madeira, um outro tipo de navio um navio de muitas velas, esquisito mas vagamente possível por volta do séc. XVIII, com dois minúsculos passarinhos fazendo de corvos, mas uns corvos comprometidos, uns corvos envergonhados com a insinuação de que teriam acompanhado S. Vicente no tempo das guerras liberais, desembarcando-o em Lisboa enquanto outros desembarcavam no Mindelo.
 
 
Actualizar a forma do barco ou navio do emblema, foi prática corrente, em várias épocas. Há até exemplos de navios a vapor com os corvos vicentinos.
Nesse sentido, actualizar por actualizar, antes actualizar mesmo, à séria.
Esta Vereação poderia até propor uma real modernização: um petroleiro gigante dos que enchem o estuário hoje (munido dos respectivos corvos) seria um bem eficaz emblema da cidade do Tejo.
 
 
E nada haveria a objectar: — é um navio e dois corvos. (Um jurista rigoroso, por exemplo, nada teria a opor certamente, dados os precedentes e atendendo à definição heráldica, completamente omissa em relação a petroleiros).
Ora há uma expressão destas inglesas, muito em voga — o «corporate design» — que significa em fala corrente a busca de uma identidade visual para uma dada organização: privada ou pública. (E claro que todos têm presente que «corporation» em língua de americano, não significa o mesmo que «corporação, em português de 1933).
Veja-se o caso de uma grande companhia de aviação, de uma marca de automóveis, ou de uma companhia de petróleos. A SHELL, por exemplo.
O emblema da Shell é uma concha ou vieira, bem conhecida:
 
 
É uma concha («shell»); simplesmente uma concha.
Mas imaginar-se-ia a Shell usando nas suas bombas de gasolina como emblema, uma concha de mexilhão; no seu papel timbrado uma de amêijoa; e nos edifícios outra de mais importância, talvez de ostra?
Não. A concha da SHELL é aquela, só aquela. Visualmente é aquele e não outro o símbolo da entidade SHELL, e o «corporate design» da firma não comporta outra versão.
É claro que as cidades duram mais que as companhias, e ao longo dos séculos, a loba com os gémeos de Roma, os ursos de Berlim ou de Berna, o Leão de S. Marcos de Veneza, têm tido diversas formas — mas é a própria História da Arte que as define, em cada época, como o fez com o navio do emblema de Lisboa.
No entanto, cada vez mais (e isso vê-se por todos os lados) as cidades procuram unificar e dar eficiência visual aos seus símbolos.
Fazem-no, e tem, para isso, boas razões, sendo a principal a de que no meio da enorme concorrência visual da publicidade comercial e política e da agressão visual do «corporate design» das grandes firmas, a presença visual dos símbolos significantes da própria Cidade são abafados.
Mas quem já tenha tido contacto com a imensa capacidade e meios de que é necessário dispor hoje para criar um símbolo gráfico eficaz sabe, sem mais, que não é coisa que esteja ao alcance de um qualquer desenhador de 2ª de uma Repartição Municipal, no intervalo de passar a escantilhão as letras para a lombada dos processos.
É preciso não alimentar ilusões de que em Lisboa, e na nossa situação actual, o Município pudesse sequer encomendar um verdadeiro estudo do seu (passe outra vez o abominável anglicismo...) «corporate design» a nível internacional. Metade do que gasta nisso a Olivetti,  a KLM, a ICI. a Geigy, resolvia-nos uma quantidade de problemas orçamentais práticos...
 
Então, vou direito ao assunto.
Depois sobretudo dos trabalhos de arqueologia naval de Lopes de Mendonça e Quirino da Fonseca, ficou bem estabelecido que a mais respeitável e antiga tradição do navio no emblema de Lisboa era a barca, tal como aparece em numerosas lápides medievais em Lisboa.
O que é uma barca? Ou melhor, o que era uma barca?
Era um navio, sem grandes variações entre o séc. XI e XIII. Com uma vela «redonda» (o que em terminologia náutica e por várias razões quer dizer, exactamente e curiosamente que é «rectangular»!) e que serviu às primeiras navegações dos Portugueses para Sul, à descoberta. Gil Eanes e Gonçalves «o Zarco» ainda fizeram as primeiras navegações, não em caravelas (produto da tecnologia naval portuguesa adaptada dos árabes e do Mediterrâneo, no fim do séc. XIV) mas sim em barcas, alugadas aos mercadores da Flandres e dos Cinco Portos que vinham cá buscar sal e vender produtos acabados.
Quando começou o Ciclo das Navegações, não tínhamos barcos para o fazer. É bom ter isto em mente. Já nessa altura dependíamos muito dos contratos de «leasing» das multinacionais da época — condição portanto que já nem é nova.
Hoje, chamar-se ia mais eufemisticamente «Contrato de transferência de tecnologia»... Adiante.
Uma barca dos mares do Norte é um navio que está para os célebres «Drakkars» vikings como um cargueiro está para um cruzador — mecanicamente são semelhantes. Mas o primeiro é utilitário, lento, pesadão largo e tosco. Assim é a barca.
Frequentemente, a própria vela levava, em grande, o emblema da corporação. «hansa», porto ou Rei que financiava a operação do navio. O emblema dos «sponsors» era assim um autêntico reclame publicitário!
 
 
Nos primeiros tempos da aventura dos descobrimentos (mas nem sequer muito tempo) os portugueses usaram na vela maior o emblema do «patrocinador» ou «financiador», que avançou com a massa: como ainda não havia a Gulbenkian, o Infante tratou de esmifrar a Ordem de Cristo; — é esse e só esse e não outro, o significado da cruz da Ordem nas velas maiores dos navios desse período em Portugal…
CRUZ HENRIQUINA
CRUZ MANUELINA
 
 
Incidentalmente, em pleno séc. XX, o navio — escola Sagres, com uma cruz de Cristo (manuelina. ainda por cima...) Em cada velinha da sua vasta armação, é de cair para o chão a rir— os estrangeiros sorriem-se condescendentemente de esta parolice lusitana, patrioteca e parva, nos cocktails das recepções das grandes regatas, porque são bem-educados. Mas por cá, parece que as pessoas acham muito bonito, põem os olhos em alvo e lágrima ao canto do olho.
É o que merecemos.
O mastro, como se mostra, era mantido em posição por enxárcias fixadas à amurada (dispositivo que evoluiu depois quando a barca se transformou em nau, mas isso não vem agora para o caso). Apenas torna mais intrigante o feixe de enxárcias que no desenho municipal se dirige para a proa e para a ré; por outras palavras — para os topos da talhada de melão.
Bizarro! Bizarro!
A vela, quando caçada e colhida junto à verga, ficaria provavelmente com este aspecto que é o representado no desenho municipal (ao menos isso!)
 
Ora, depois dos esforços de Lopes de Mendonça, o Município de Lisboa, sem grande convicção, lá foi adoptando a barca como símbolo. Burocraticamente, sem inteligência nem entusiasmo, como se poderia esperar.
Mas, desenhado por burocratas, tem dado resultados espantosos, que se espalham pela cidade, pelos edifícios, pelas publicações. Desde cascos com portaló e escotilhas, como se tratasse de um paquete de linha, até velas enroladas na verga, como se fosse roupa molhada para espremer e pôr a secar.
 
 
Aparece de tudo, para gáudio dos estrangeiros relativamente conhecedores; os nacionais, claro, estão-se nas tintas para assuntos tão comezinhos e indignos. Num País como o nosso, debatendo-se sempre os mais altos valores culturais e intelectuais (com jornais próprios e linguagem própria), que parvoíce haver preocupação com o desenho de um barquinho. Um barquinho. Imagine-se! E, doutro ponto de vista ainda mais característico: «em que é que isso contribui para o Produto Nacional Bruto»? «Pelo menos, interessa à Lisnave ou à Setenave?» Não? De facto não. Então pronto, não é problema. Tenho pena, mas é um facto que este caso não contribui nada, nem para o PIB, nem para o VAB, nem para a formação bruta de capital fixo, nem para o equilíbrio da balança de pagamentos. Portanto não é um problema. Não existe. Nem sequer ajuda a resolver um bocadinho os problemas da Cidade. Nada. Nada. A perfeita inutilidade.
 
Por isso, não proponho nada a esta Câmara, sobrecarregada como está com reais problemas concretos; não seria justo faze-la perder tempo com pormenores (?) insignificantes. Há coisas bem mais sérias e graves para resolver.
 
Mas tenho, cá para mim, a convicção (e como disse, isto é um desabafo...) de que um emblema «standard», estudado para a sua reprodução e legibilidade em todas as escalas, para a sua execução em todos os materiais, mas minimamente DECENTE do ponto de vista da arqueologia naval, só faria bem ao Município.
Na falta de um verdadeiro «corporate design», um emblema, que não precisa de ser realista ou documental, nem o deve ser — mas que pelo menos não fosse ridículo e absurdo, não faria mal nenhum, mas deveria então usar-se SEMPRE disciplinadamente.
A «barca» deveria ter plausivelmente esta configuração: ou, com os chamados «CASTELOS» de proa e popa armados para a pancadaria de barco para barco, que a tanto montava a táctica naval da época...
 
Ora, em torno disto, qualquer gráfico competente encontrará dezenas de soluções convenientes, variando a escala dos corvos, usando a bandeira da cidade como vela, etc. eu sei lá!
Ensaiei alguns exemplos. Sem responsabilidade. Só para mostrar que é possível:
 
 
E uma vez escolhido um qualquer, um razoável, então que se use, caramba! Que se use SEMPRE mas só esse, inflexivelmente. E que se acabe de vez com a homenagem ao melão equilibrista e a outras fantasias desse jaez!
 
 
Desabafei!