Em tempos, pertencendo à Vereação da Câmara Municipal de Lisboa,
escrevi este texto para difusão restrita entre os membros daquele colégio
autárquico. Passado tanto tempo já, e tratando-se de matéria tão simples, eles
perdoar-me-ão, certamente, que lhe dê divulgação, porque poderá interessar a
muitos leitores lisboetas. Apenas melhorei aqui ou ali a gramática, pois que
era uma coisa escrita despreocupadamente, e refiz alguns desenhos para darem
melhor reprodução no jornal.
Colegas Vereadores
Esta Câmara debruça-se permanentemente
sobre problemas angustiantes e difíceis da Cidade. Problemas que nos esmagam e
têm feito sofrer, como sabemos.
Também é verdade que tem sido
gasto muitas vezes tempo com casos de somenos, questões e questiúnculas —
porque negá-lo?
Sendo assim, não me sinto inibido
quando me ocorre, quase por desfastio de tanta agrura, apresentar um problema
perfeitamente secundário, longe das casas que caem, das famílias sem lar, dos
milhões do défice, do trânsito insolúvel...
Nem sequer solicito deliberações
ou discussão; só isso, que descanso!
É um simples desabafo de um
fulano que profissionalmente esteve e eventualmente ainda está ligado às artes
visuais, senhores Vereadores:
Eis aqui o emblema de uma Cidade
ilustre, que faz 800 anos; emblema com raízes profundas na lenda, na História,
no mito — tal como aparece na bandeira e nas publicações municipais.
Do lendário navio que, das praias do Sul,
trouxe até ao Tejo as relíquias veneráveis de S. Vicente, acompanhado por dois
corvos, resta hoje apenas isto: uma espécie de meio melão, esfaqueado por uma
coisa que deve querer representar o leme (a bombordo?!), e onde dois passarões
pretos parecem brincar ao balancé.
Em rigor, até, o emblema tal como
está, teria mais piada se fosse móvel — corvo acima, corvo abaixo, corvo acima,
corvo abaixo — subtil mas rica alusão aos avatares da governação municipal.
Assim:
Parece também ser do consenso
geral que os barcos, usualmente, andam na
água e não pairando sobre ela — a não ser que neste, o facto de transportar as
relíquias do Santo permita uma cera levitação mística.
Mas se olharem para as costas das
cadeiras da sala de sessões onde passamos longas horas (e esquecendo por agora
a sua antipática peculiaridade de entalar os dedos a quem tenta levantar-se da
sua) verão, talhado na madeira, um outro tipo de navio um navio de muitas
velas, esquisito mas vagamente possível por volta do séc. XVIII, com dois
minúsculos passarinhos fazendo de corvos, mas uns corvos comprometidos, uns
corvos envergonhados com a insinuação de que teriam acompanhado S. Vicente no
tempo das guerras liberais, desembarcando-o em Lisboa enquanto outros desembarcavam
no Mindelo.
Actualizar a forma do barco ou
navio do emblema, foi prática corrente, em várias épocas. Há até exemplos de
navios a vapor com os corvos vicentinos.
Nesse sentido, actualizar por actualizar, antes
actualizar mesmo, à séria.
Esta Vereação poderia até propor
uma real modernização: um petroleiro gigante dos que enchem o estuário hoje
(munido dos respectivos corvos) seria um bem eficaz emblema da cidade do Tejo.
E nada haveria a objectar: — é um navio e dois
corvos. (Um jurista rigoroso, por exemplo, nada teria a opor certamente, dados
os precedentes e atendendo à definição heráldica, completamente omissa em relação
a petroleiros).
Ora há uma expressão destas
inglesas, muito em voga — o «corporate design» — que significa em fala corrente
a busca de uma identidade visual para uma dada organização: privada ou pública.
(E claro que todos têm presente que «corporation» em língua de americano, não
significa o mesmo que «corporação, em português de 1933).
Veja-se o caso de uma grande
companhia de aviação, de uma marca de automóveis, ou de uma companhia de
petróleos. A SHELL, por exemplo.
O emblema da Shell é uma concha
ou vieira, bem conhecida:
É uma concha («shell»);
simplesmente uma concha.
Mas imaginar-se-ia a Shell usando
nas suas bombas de gasolina como emblema, uma concha de mexilhão; no seu papel
timbrado uma de amêijoa; e nos edifícios outra de mais importância, talvez de
ostra?
Não. A concha da SHELL é aquela, só aquela. Visualmente é aquele
e não outro o símbolo da entidade SHELL, e o «corporate design» da firma não
comporta outra versão.
É claro que as cidades duram mais
que as companhias, e ao longo dos séculos, a loba com os gémeos de Roma, os
ursos de Berlim ou de Berna, o Leão de S. Marcos de Veneza, têm tido diversas
formas — mas é a própria História da Arte que as define, em cada época, como o
fez com o navio do emblema de Lisboa.
No entanto, cada vez mais (e isso
vê-se por todos os lados) as cidades procuram unificar e dar eficiência visual
aos seus símbolos.
Fazem-no, e tem, para isso, boas razões, sendo
a principal a de que no meio da enorme concorrência visual da publicidade comercial
e política e da agressão visual do «corporate design» das grandes firmas, a
presença visual dos símbolos significantes da própria Cidade são abafados.
Mas quem já tenha tido contacto
com a imensa capacidade e meios de que é necessário dispor hoje para criar um
símbolo gráfico eficaz sabe, sem mais, que não é coisa que esteja ao alcance de
um qualquer desenhador de 2ª de uma Repartição Municipal, no intervalo de
passar a escantilhão as letras para a lombada dos processos.
É preciso não alimentar ilusões
de que em Lisboa, e na nossa situação actual, o Município pudesse sequer
encomendar um verdadeiro estudo do
seu (passe outra vez o abominável anglicismo...) «corporate design» a nível
internacional. Metade do que gasta nisso a Olivetti, a KLM, a ICI. a Geigy, resolvia-nos uma
quantidade de problemas orçamentais práticos...
Então, vou direito ao assunto.
Depois sobretudo dos trabalhos de
arqueologia naval de Lopes de Mendonça e Quirino da Fonseca, ficou bem estabelecido
que a mais respeitável e antiga tradição do navio no emblema de Lisboa era a barca, tal como aparece em numerosas
lápides medievais em Lisboa.
O que é uma barca? Ou melhor, o que era uma barca?
Era um navio, sem grandes variações
entre o séc. XI e XIII. Com uma vela «redonda» (o que em terminologia náutica e
por várias razões quer dizer, exactamente e curiosamente que é «rectangular»!)
e que serviu às primeiras navegações dos Portugueses para Sul, à descoberta.
Gil Eanes e Gonçalves «o Zarco» ainda fizeram as primeiras navegações, não em caravelas (produto da tecnologia naval
portuguesa adaptada dos árabes e do Mediterrâneo, no fim do séc. XIV) mas sim em
barcas, alugadas aos mercadores da
Flandres e dos Cinco Portos que vinham cá buscar sal e vender produtos
acabados.
Quando começou o Ciclo das
Navegações, não tínhamos barcos para o fazer. É bom ter isto em mente. Já nessa
altura dependíamos muito dos contratos de «leasing» das multinacionais da época
— condição portanto que já nem é nova.
Hoje, chamar-se ia mais eufemisticamente
«Contrato de transferência de tecnologia»... Adiante.
Uma barca dos mares do Norte é um
navio que está para os célebres «Drakkars» vikings como um cargueiro está para
um cruzador — mecanicamente são semelhantes. Mas o primeiro é utilitário, lento,
pesadão largo e tosco. Assim é a barca.
Frequentemente, a própria vela
levava, em grande, o emblema da corporação. «hansa», porto ou Rei que
financiava a operação do navio. O emblema dos «sponsors» era assim um autêntico
reclame publicitário!
Nos primeiros tempos da aventura
dos descobrimentos (mas nem sequer muito tempo) os portugueses usaram na vela
maior o emblema do «patrocinador» ou «financiador», que avançou com a massa: como
ainda não havia a Gulbenkian, o Infante tratou de esmifrar a Ordem de Cristo; —
é esse e só esse e não outro, o significado da cruz da Ordem nas velas maiores
dos navios desse período em Portugal…
CRUZ HENRIQUINA
CRUZ MANUELINA
Incidentalmente, em pleno séc. XX,
o navio — escola Sagres, com uma cruz de Cristo (manuelina. ainda por cima...)
Em cada velinha da sua vasta armação,
é de cair para o chão a rir— os estrangeiros sorriem-se condescendentemente de
esta parolice lusitana, patrioteca e parva, nos cocktails das recepções
das grandes regatas, porque são bem-educados. Mas por cá, parece que as pessoas
acham muito bonito, põem os olhos em alvo e lágrima ao canto do olho.
É o que merecemos.
O mastro, como se mostra, era
mantido em posição por enxárcias fixadas à amurada (dispositivo que evoluiu
depois quando a barca se transformou em nau, mas isso não vem agora para o
caso). Apenas torna mais intrigante o feixe de enxárcias que no desenho
municipal se dirige para a proa e para a
ré; por outras palavras — para os topos da talhada de melão.
Bizarro! Bizarro!
A vela, quando caçada e colhida
junto à verga, ficaria provavelmente com este aspecto que é o representado no
desenho municipal (ao menos isso!)
Ora, depois dos esforços de Lopes
de Mendonça, o Município de Lisboa, sem grande convicção, lá foi adoptando a
barca como símbolo. Burocraticamente, sem inteligência nem entusiasmo, como se
poderia esperar.
Mas, desenhado por burocratas,
tem dado resultados espantosos, que se espalham pela cidade, pelos edifícios,
pelas publicações. Desde cascos com portaló e escotilhas, como se tratasse de
um paquete de linha, até velas enroladas
na verga, como se fosse roupa molhada para espremer e pôr a secar.
Aparece de tudo, para gáudio dos
estrangeiros relativamente conhecedores; os nacionais, claro, estão-se nas
tintas para assuntos tão comezinhos e indignos. Num País como o nosso,
debatendo-se sempre os mais altos valores culturais e intelectuais (com jornais
próprios e linguagem própria), que parvoíce haver preocupação com o desenho de
um barquinho. Um barquinho. Imagine-se! E, doutro ponto de vista ainda mais
característico: «em que é que isso contribui para o Produto Nacional Bruto»? «Pelo
menos, interessa à Lisnave ou à Setenave?» Não? De facto não. Então pronto, não
é problema. Tenho pena, mas é um facto que este caso não contribui nada, nem
para o PIB, nem para o VAB, nem para a formação bruta de capital fixo, nem para
o equilíbrio da balança de pagamentos. Portanto não é um problema. Não existe.
Nem sequer ajuda a resolver um bocadinho os problemas da Cidade. Nada. Nada. A perfeita
inutilidade.
Por isso, não proponho nada a
esta Câmara, sobrecarregada como está com reais problemas concretos; não seria
justo faze-la perder tempo com pormenores (?) insignificantes. Há coisas bem
mais sérias e graves para resolver.
Mas tenho, cá para mim, a
convicção (e como disse, isto é um desabafo...) de que um emblema «standard»,
estudado para a sua reprodução e legibilidade em todas as escalas, para a sua
execução em todos os materiais, mas minimamente DECENTE do ponto de vista da arqueologia
naval, só faria bem ao Município.
Na falta de um verdadeiro
«corporate design», um emblema, que não precisa de ser realista ou documental,
nem o deve ser — mas que pelo menos não fosse ridículo e absurdo, não faria mal nenhum, mas deveria então usar-se
SEMPRE disciplinadamente.
A «barca» deveria ter
plausivelmente esta configuração: ou, com os chamados «CASTELOS» de proa e popa
armados para a pancadaria de barco para barco, que a tanto montava a táctica
naval da época...
Ora, em torno disto, qualquer
gráfico competente encontrará dezenas de soluções convenientes, variando a
escala dos corvos, usando a bandeira da cidade como vela, etc. eu sei lá!
Ensaiei alguns exemplos. Sem responsabilidade.
Só para mostrar que é possível:
E uma vez escolhido um qualquer, um
razoável, então que se use, caramba! Que se use SEMPRE mas só esse, inflexivelmente.
E que se acabe de vez com a homenagem ao melão equilibrista e a outras
fantasias desse jaez!
Desabafei!