quinta-feira, 2 de maio de 1985

As árvores e as ervas portuguesas (3)

Disse anteriormente que as árvores portuguesas eram a verdadeira imagem dos próprios portugueses, nas suas virtudes e seus defeitos.
 
Mas é com a erva que talvez com mais força essas características sejam traduzidas; também na erva abundam as interpretações insuficientes, sobretudo na sua forma mais «racista» — a relva.
Relva, relvados — outras imagens importadas.
 
Relva: os «greens» ingleses, as «pelouses» francesas. São extensões bem ordenadas constituídas por vegetais obedientes e bem comportados, bem alimentados, vivendo num ambiente húmido que dispensa regas frequentes, vegetais sossegados e sem imaginação, incapazes de infringir a ordem que lhes foi imposta.
Entram assim no imaginário popular português, tanto como as louras nórdicas, o dólar e os Mercedes — desejáveis, mas alheios.
 
A gente vai a um país de além-Pirenéus ou além-Mancha e vê uma estrada com as suas pontes, muros de suporte, bueiros, viadutos e entre eles, taludes e espaços de relva. A gente observa com atenção e vê que a estrada ou auto-estrada não é muito nova, apresenta sinais de uso intenso, mas que a relva também não é propriamente uma «relva» de jardim, cuidadosamente aparada — é erva mista, é prado. Mas observa também, com surpresa que esse manto vegetal se mantém certinho, dentro dos limites, verde, fofo, contínuo. O tordo e o melro, a espaços, lá se encontram, de manhã puxando pelas minhocas que povoam o húmus fértil.
Então, o arquitecto e o paisagista portugueses comovem-se. Chegam cá, e nos seus projectos, lá vem, a verde de gouache o inevitável relvado, e acompanham, excitados a sua plantação, com relva pura e verdadeira.
 
Mas a gente observa depois uma estrada, um jardim, uma calçada portuguesa recém-acabada: impecável, tão bem construída como as que se vêm no estrangeiro, e com relvados perfeitos e verdinhos, lindos, catitas. No fim do Verão seguinte, cadê o relvado? Com as regas, com os cuidados do jardineiro, o que é que lá está? Terra poeirenta com uns restos amarelados e hirsutos de relva inicial, e robustos tufos de ervas de variadas formas, cores e flores diversas (por vezes lindas, ainda que não desejadas, como certos filhos não esperados...) Junto às paredes cardos ameaçadores e sólidos foram precedidos por serralhas e urtigas tenazes; funchos e acantos bravos, trevo e cebola albarrã, e marcam a sua presença com vigor. Arranca-los é inútil, porque as suas raízes lá estão fundas.

E nas frinchas nas juntas das pedras, nos lesins de algum silhar mais ordinário, debaixo do pé da estátua mais solene, a sementinha trazida pelo vento encontra poiso, agarra-se, luta, vence. O manto de asfalto da faixa de rodagem abre uma frincha, nasce um pequeno tumor, rompe-se gloriosamente numa farfalhuda ramagem que em breve se enche de florinhas delicadas e azuis. Nada, absolutamente nada, consegue parar a erva portuguesa na sua ansia — no seu direito! de viver.
Das molduras, das engras, das alheias arquitectónicas pendem modestas mas irónicas grinaldinhas de dente-de-lobo e arroz de telhado. Não acontece isto nos países da erva disciplinada e tenra, nem nos pobres países da areia desértica e do sol escaldante, aos quais é preciso levar «in extremis» alguns vegetais comestíveis.
 
A erva, como a árvore portuguesas, não tem a majestade, a beleza, o luxo, lá dos países do Norte onde se situa a pátria intelectual dos paisagistas profissionais — mas também não é a expressão da miséria do Sahel ou do Nordeste brasileiro.
Ora bem. Entenda-se. Esta força irresistível da erva e da árvore portuguesa é também a força dos portugueses; torta, incompleta, indisciplinada.
 
A orgulhosa floresta centro europeia pode estar perdida em 10% e ameaçada em mais de 40% pela poluição; as monoculturas herbáceas dos países hiperdesenvolvidos podem estar a dar sinais de saturação pelos pesticidas e fertilizantes químicos. Mas a erva portuguesa é, toda ela uma «desobediência civil» em acto, manifestando a maior das capacidades de resistência à adversidade, à monotonia, à ordem fascistamente imposta pela jardinagem e pelo paisagismo comercial, ao «apartheid» racial dos relvados que não admitem a presença poluidora de uma espécie não «aprovada»...
 
É porque há erva e árvores como os portugueses e há portugueses como a erva que foi possível a expansão ultramarina, e a diáspora da emigração para os meios mais hostis. Onde houver uma pequena frincha, o menor nicho, o português agarra-se e sobrevive. É porque há erva como os portugueses e portugueses como a erva portuguesa que a CEE não nos vai dominar nem absorver, como alguns temem.
 
A «pelouse» e o «green» industrial, cultural, económico vão chegar a este País, como já chegaram outras ondas («vagas», diz-se agora). Com o tempo devido, transformar-se-ão em prados, onde for possível.
A imagem da paisagem mental, cultural, intelectual, económica e política não será simbolicamente a da floresta de carvalhos e abetos, nem a do baobab e da areia do deserto.
A nossa erva não é nada que tenha a ver com a relva de Bruxelas nem os cactos de Tombuctu.
A oliveira, a carrasca, o matagal mediterrânico assegurarão a nossa portugalidade. Sobreviveremos.
 
Olhe para a árvore, leitor, e pense!