terça-feira, 23 de abril de 1985

As árvores e as ervas portuguesas (2)

Havia um teste de psicologia caseira que se fazia muito: pedia-se a uma pessoa que desenhasse uma árvore, assim, sem mais, e tiravam-se depois imensas conclusões acerca do seu carácter, conforme o desenho mostrava ou não as raízes, conforme a copa era desenhada larga ou alta, o tronco cilíndrico e grosso ou ramificado, etc. As conclusões, essas, sempre me pareceu serem tiradas a olho, a partir do conhecimento prévio do paciente pelos Rörschachs de circunstância do salão ou do escritório, e pouco tinham a ver com o desenho, mas adiante...
 
Quero eu dizer é que na ideia de cada português medianamente culto existe um certo conceito de árvore, como o de uma coisa grande, equilibrada, majestosa, simétrica, pacifica e pacificante. A poesia e a instrução primária encarregaram-se de encasquetar em nós essas imagens.
Com essas imagens habituamo-nos a conviver.
Com as árvores reais, não.
Os portugueses não amam nem conhecem as árvores, é bem sabido. Têm sido dadas muitas explicações para isso: a raiz mourisca de grande parte da população, o culto ancestral e bárbaro da Terra e dos seus ciclos, que tem muito mais a ver com arbustos, giestas e mais do que com árvores, cá no sul. Druidas e grandes florestas de carvalhos à Asterix nunca tiveram nada a ver connosco, que somos do matagal mediterrânico.

 
A minha explicação é outra, e muito melhor.
 
O português não ama nem respeita a árvore portuguesa porque ela é demasiadamente parecida com ele próprio. A árvore portuguesa acusa-nos vivamente dos defeitos da nossa própria portugalidade, sem nunca nos ter mostrado claramente os valores dessa mesma portugalidade.
Quando pensamos em árvore pensamos instintivamente nos grandes carvalhos das florestas do Maciço Central, nos enormes ulmeiros, perfeitíssimos na suave paisagem das ilhas britânicas, nos abetos hirtos e disciplinados da Escandinávia, nas míticas sequoias dos parques do norte dos Estados Unidos. Pensamos nelas, e associamo-las logo a povos louros, espadaúdos, ricos, disciplinados e prontos a formar-se em esquadrões logo que lhes apareça um chefe.
Pensamos nessas árvores.
Mas as que vemos ao longo das nossas estradas e nos nossos campos são o nosso retrato, são demasiadamente, cruelmente, como nós: faias e freixos retorcidos pelo vento, criados num solo pobre e seco, cheios de rebentos espúrios, ramos mortos e partidos, doentes e amarelentos por falta de sais minerais adequados e muita sedezinha.
 
E nas ruas da cidade de Lisboa? De tão habituados, nem reparamos na quantidade de seres aleijados, torcidos pelo vento encanado pelas ruas e pelos turbilhões das esquinas, com pavorosas queimaduras do Sol nos troncos feridos também pelos automóveis estacionados, cheios de cortes e cicatrizes cimentadas pela cirurgia municipal tentando salvar exemplares feridos de infecções, crescendo aflitas com a sufocação imposta à sua respiração radicular pelos pavimentos impermeabilizados pelos óleos da civilização automóvel, com as raízes esmagadas pela compactação produzida pelo trânsito, com os poros das folhas obstruídos pelas poeiras sulfurosas...
Nem reparamos.
Reparamos nos pobrezinhos aleijados que agora em número crescente pedem esmola em pontos estratégicos da Baixa — deveriam servir para despertar uma intensa consciência social naqueles que a não têm. Mas nos aleijadinhos vegetais que morrem e sofrem horrores à nossa vista, nas ruas, nem reparamos.
Silenciosas, passivas, essas pobres vítimas da cidade não têm quem as defenda. Postas fora da mata a que deveriam pertencer, associadas quantas vezes a vizinhos estranhos e mal comportados, de raças e continentes diversos, as pobres lá vão fazendo pateticamente o seu papel de animar pouco a aridez urbana.
 
 
Mas o urbanita, o contentinho habitante da cidade, pensa: que bonitas que ficam as ruas com as árvores ali alinhadas nos passeios, não pensa que são seres vivos e que como tal têm a sua própria maneira de viver e de se associar.
 
Vá vê-las na mata bem equilibrada, em que os diversos patamares ou alturas das espécies se associam e sobrepõem e protegem mutuamente, (e veja ao mesmo tempo o horror que são os pinhais e eucaliptais que estão a cobrir a nossa terra — e cujo momento de glória atingem apenas indirectamente nos espampanantes relatórios de contas anuais das companhias de celulose; além dos momentos dramáticos, de lágrima ao canto do olho e grande fraseado acusador quando periodicamente ardem uns milhares de hectares daquela cultura de malandros e absentistas...)
Veja as grandes árvores solenes — plátanos gigantescos nunca podados que aparecem às vezes no meio da paisagem nortenha; veja os austeros sobreiros e azinheiros perdidos entre a planície e o céu alentejano; os pinheiros mansos que aqui e além, no Ribatejo, marcam a paisagem como monumentos. Essas são árvores, dignas desse nome ilustre.
Agora, os miseráveis choupos, esses pincéis fininhos que o paisagismo comercial impinge aos jardins de Lisboa, destinados a crescer depressa (e, claro, a morrer depressa também... nuns trinta anitos de vida), a faias negras que pegam sempre e rebentam depois com os pavimentos e os passeios, lançando rebentos nos sítios mais distantes e imprevistos — não tem dignidade para serem pensadas como árvores. Creio que foi à custa de muita insistência directa e indirecta de Raul Lino que, na Rotunda do Marquês foram plantados (de má vontade, mas lá estão) carvalhos, árvores nobres entre todas, mas que vão levar muito tempo a fazer-se grandes - passarão duas ou três vidas de choupo de aviário, mas então, que esplendor...
Assim é que as árvores portuguesas são, apenas e simplesmente, como os próprios portugueses: arregimentados anónimos para a exportação, celulósicos emigrantes; ou curvados, anémicos e doentes citadinos afastados da natureza, da comunidade natural e privados do direito à saúde e à liberdade; ou rudes campesinos duramente tratados pelo temporal na terra árida e ingrata.
 
Mas mesmo nesta aparente miséria nacional e arbórea há virtudes. Estas são porém mais aparentes nos arbustos e na erva portuguesa, em quem ninguém parece pensar — e muito menos os «arquitectos paisagistas».
 
Falaremos delas no próximo artigo.