quarta-feira, 17 de abril de 1985

As árvores e as ervas portuguesas (1)

Celebrou-se há pouco o Dia da Árvore. A muitos terá escapado o encantador sabor revivalista, republicano, simbólico, desta festa. A mim só me fez lembrar uns cartazes que o meu avô Roque Gameiro desenhou para aquelas festividades de então, que o Estado Novo olhou com visível desprazer e obliterou discretamente.

 
A geração dos meus filhos (como a minha), não se movimentou em massa, cantando hinos, no Dia da Árvore. Em primeiro lugar porque os ecologistas, que se poderia pensar serem de certa maneira herdeiros dessa tradição, davam por esses dias uma imagem pouco animadora de si mesmos, em Troia. Em segundo lugar porque, perante a poluição química, a crise energética e as hipóteses nucleares de um cinzento doentio, a alegre brincadeira de plantar um choupo por entre danças com grinaldas à Isadora Duncan e discursos pançudos de pêra e colarinho engomado não tem poder motivador. Em terceiro lugar porque «árvore» hoje, não é tanto o que dá, a sombra ao viajante (que até vai pelas auto-estradas…) nem faz a sua mesa e o seu leito (que tendem a ser em «design» metálico e de laminados), etc. — «árvore», hoje é Eucalipto «globulus» ou «pinus pinaster», a 15 toneladas/hectare/mês. É economia. É finanças. É indústria. É celulose. É comércio externo. Poesia é que não é.
 
Quanto ao Dia da Árvore, republicano, agnóstico, naturalista, paganizante, escolar, declamatório, moralista à William Morris, corégico e solene, tenho a dizer que a operação «Inforjovem» movimentada pelo S. de Estado R. Junqueiro, plantando pelo país fora estacas de computadores regadas a «software» adequado, me parece uma versão tecnocrática e actualizada do Dia da Árvore, muito mais «aggiornata» e atraente para os novos do que plantar um platanozito no pátio da escola. Provavelmente, mito por mito, será até mais eficaz — ainda que lá muito no fundo o espírito seja o mesmo e, talvez por isso, acolhedoramente aceite.
 
Não sei se os novos computadorzinhos instalados são circundados por jovens de túnica branca, dançando com grinaldas de flores e «listings em Basic», mas estaria a carácter. Mas não: é mais provável que jovens tensos e sérios, de «blue jeans», acne juvenil e óculos de muitas dioptrias celebrem o culto novo do «byte», do IF-THEN do GOSUB, do RUN e do PRINT, sem indevidas exteriorizações físicas. É assim.
 
Para a dança lá estão depois as discotecas e o «breakdance».
 
Mas, voltemos à árvore. Um debate, por exemplo como o que se ouviu na rádio, à noite, no dito Dia da Árvore, mostra bem a tremenda confusão que vai na mente dos silvicultores - e daqueles silvicultores que com mais umas cadeiras avulsas recebem da faculdade o título (em si mesmo algo bizarro) de «Arquitectos paisagistas». Verifico agora, por ter seguido de perto alguns resultados e comportamentos, que essa coisa nova chamada «Arquitectura Paisagística» atravessa um período de ruptura não inferior ao que atravessa essa outra coisa antiga, antiga, a que se dá o nome só de «Arquitectura». Apenas, a primeira está na fase de «afirmação a todo o custo», e a segunda parece estar na fase de «denegação a qualquer preço...»
 
Nesse debate viu-se bem como deixou de ser unívoca a ideia de árvore — desde o ser individual vegetal de certo porte a que nos afeiçoámos ao ponto de conhecer cada rugosidade do seu tronco, cada inflexão dos seus ramos e raminhos, até à árvore como elemento de uma composição voluntária sobre um terreno ou ao longo de ruas e avenidas (no fundo, pouco mais nobres que postes de iluminação ou belas peças do mobiliário urbano), até às árvores como «arvoredo» anónimo ou indiferenciado, não individualizado, mera matéria-prima lenhosa.
E são os que, teoricamente pelo menos, sabem tudo da árvore. Reconheço até, em alguns, a paixão e a dedicação por uma coisa que amam e pela qual se batem — é bonito que ainda haja pessoas assim.
 
Nos artiguinhos que se vão seguir, procurarei, com modéstia mas também com convicção, referir um certo número de ideias, de práticas, de mitos e de ignorâncias que nos rodeiam — não só sobre a árvore mas também sobre o arbusto e a erva.
Pedirei aos meus leitores, tão pacientes! que não se preocupem em ler livros e tratados, mas que façam essa coisa simples e maravilhosa que é abrir os olhos e «ver»
«Ver» e pensar sobre o que se vê! Como nos desabituamos todos disso, mercê da televisão, da propaganda! Peço ao leitor que o faça: não lhe peço que concorde comigo! Veja, e pense por si. Se chegar a conclusões semelhantes às minhas, ficarei contente.
 
Mas se chegar a conclusões diferentes, também ficarei contente — sou fácil de contentar, desde que veja à minha volta interesse, curiosidade e boa intenção intelectual!...