quinta-feira, 4 de outubro de 1984

Municípios e Borda-d’água

É bem conhecida a importância desta coluna como serviço público, em certo sentido não inferior ao do indispensável «Borda-d’água »…
Ora verificando através daquela folha estimável que por esta altura chega o pato bravo e a narceja, na horta semeia nabiça e couves, faz queimada de folhas velhas, semeia petúnias e margaridas, parece-me que devo lembrar também que este é o tempo adequado para semear novos municípios.
Vejamos.
Vêm as primeiras chuvas, acabaram os fogos de Verão, foram-se embora os emigrantes em férias e os turistas, reabre a Assembleia e os «pubs» de políticos na capital. Nas vilas os cafés perdem a animação e há pouco que discutir, por outro lado, aproximam-se eleições autárquicas e outras. Portanto, os tempos estão maduros. É a altura de semear novos municípios, e, presumindo que apesar de tudo as pessoas ainda não tenham grande experiência da vida autárquica concreta, vou explicar como é que se faz.
Em primeiro lugar arranja-se um pretexto. Há sempre pretextos, e qualquer um serve, para este fim. Por exemplo, dizer que a Câmara só liga à sede do concelho e só lá é que faz benefícios nas ruas, só lá é que há clube da segunda divisão, só lá é que pode ir pagar os impostos ou só lá é que há cinema com filmes pornográficos aos sábados - e a freguesia sente-se com direito a tudo isso. E claro que é imbecil mas serve!
A seguir procuram-se razões históricas: o melhor de tudo é, de longe, descobrir que a freguesia já foi um município daqueles que levaram uma machadada do Mouzinho da Silveira - isso é ouro sofre azul! Mas se não for, os futuros munícipes não se preocupem: há outras coisas que servem para justificar plenamente a importância histórica do lugar. Há-de haver vestígios romanos (há-os por todo o lado!), há-de haver alguma quinta ilustre, há-de haver, que diabo! a casa onde nasceu qualquer cidadão importante. Procurem também, caramba! Não posso fazer tudo! Há-de haver pelo menos um director-geral nascido na freguesia. Um coronel. Um capitão. Até um jogador de futebol conhecido, em último caso...
 
Vem então a parte mais importante, e aqui requer-se muito ourelo, muito olho vivo, aliado a uma apurada sensibilidade ao sempre precário equilíbrio do poder nas forças vivas locais. Trata-se de procurar cuidadosamente qual é o segundo partido mais forte no município, e não precisa ser da oposição. Repare-se que é o segundo mais forte que é preciso procurar aí no sítio, e não o mais forte, como mentalidades ingénuas e pouco atentas ao fenómeno político poderiam supor. Porque é esse o que vai fazer força para criar um municipiozinho onde, então, invocando a gratidão popular, tenha chances de ser o primeiro votado...
Descobre-se a seguir nesse partido quem são os elementos mais aptos a fazerem uma demagogia desenfreada e sem o menor pudor (é útil passar em revista os comportamentos individuais em eleições passadas). Esses são os que vão servir. É, de resto, o embrião da futura vereação, e fica-se logo a saber com quem se vai contar.
Será então a alvura de fazer proclamações, conferências de imprensa, cartazes nas estradas, representações a S. Bento; em suma, fazer o maior estardalhaço possível, chateando meio mundo.
(Nós, aqui em Campolide, estamos a pensar em cortar a Rua de Campolide ao trânsito, impedindo a passagem do 15 para o Cais do Sodré e do 58, até sermos atendidos nas nossas justas reivindicações de independência autárquica em relação a Lisboa, cuja Câmara nos vem sistematicamente e acintosamente privando da Universidade, do aeroporto e da pista de tartan a que temos inalienável direito - só um município nosso, muito nosso resolverá esses nossos problemas!)
Um mês antes das eleições, mais coisa menos coisa, se tudo tiver sido bem feito, está no papo. Municipiozinho criado, pelo menos em promessa. Isto, se for semeado agora: depois das eleições e com tempo seco, os municípios não pegam.
 
É agora o tempo apropriado.
Depois não digam que não avisei.