quinta-feira, 1 de março de 1984

O Governo adverte que o uso do dinheiro pode ser prejudicial à economia

Isto, proponho que seja inscrito na orla das notas do Banco de Portugal, tal como, de modo análogo, se faz nos maços de cigarros.
Porquê?
É evidente. Gastem dinheiro, gastem dinheiro, comprem coisas à farta — e depois venham queixar-se da inflação: Gastar dinheiro é perigoso, sempre me pareceu... mas então o Governo que o diga claramente logo ali nas notas como faz nos cigarros, em vez de arranjar argumentos oblíquos para falar de austeridade por um lado, e por outro lado esperar que certos consumos aumentem para poder aumentar também as tributações (chama-se a isso, nas direitas, «a reprise da actividade económica!...»)
Assim, o Governo assumiria com clareza louvável mais uma das ambiguidades de todo o nosso sistema.
Repare-se: os Tabacos, um dos sectores públicos mais florescentes, e o rendimento fiscal que dali vem para o Estado é do tamanho que se sabe (e não é coisa de agora: lembremo-nos da importância da chamada Questão dos Tabacos quando da queda da monarquia...). Mas, por outro lado, o Governo enche-se de virtuosa benfeitoria curando da saúde dos cidadãos, e até vai ao ponto de propor um «Dia do Não - Fumador». Deste modo a ambiguidade que parece ser necessária à prática da governação mantem-se. O Governo fica moralmente justificado, porque avisou, e cada um fica moralmente culpabilizado, porque utilizou.
 
 
Ah! Então é assim?
Se é assim, tenho outras propostas a fazer:
— «O governo adverte que o uso do automóvel pode causar engarrafamentos e congestão nas estradas» (esta, é para por junto às bombas de gasolina!)
— «O Governo adverte deque o uso da televisão pode prejudicar a saúde mental.» (para por antes de cada Telejornal)
— «O Governo adverte de que comer pode prejudicar a nossa balança comercial» (esta é para a porta dos supermercados e mercearias).
 
Esta coluna, que se entende como um espaço de refúgio último do bom-senso caseiro e vulgar, oferece algumas sugestões no âmbito da saúde da vida cívica (ainda que sem chegar ao ponto de recomendar uma saudável e atraente «desobediência cívica», porque para praticar uma boa desobediência cívica é preciso ter profundos e arreigados hábitos de obediência cívica, dos quais, infelizmente, nem nós — nem a Igreja! Nos podemos orgulhar...)
 
Então, por exemplo:
No fim das declarações de impostos, os contribuintes escreverão:
— «Os cidadãos advertem o Governo que o mau uso deste dinheiro lhe acarretará dissabores».
Com o pagamento da taxa de televisão, o utilizador mandará um papelinho impresso dizendo:
— «O telespectador adverte a RTP de que qualquer taxa deve corresponder a um serviço decentemente prestado, e já começa a estar farto»
 
Ao votar, o eleitor entregará ao presidente da assembleia de voto uma «declaração de voto» neste sentido:
— «O eleitor adverte os eleitos de que o mau uso dos poderes que lhes forem confiados por esta eleição poderá prejudicá-los nas próximas eleições» (e não me digam que é anti-constitucional ou outra parvoíce dessas, advertir os nossos eleitos acerca de coisa tão grave e importante. Só os ditadores é que não podem ser advertidos! Serão os nossos eleitos ditadores em potencial?)
Portanto (« Um País advertido vale por dois» e «Quem me adverte meu amigo é»), cada um, avisado, saberá com o que conta sem margem nem desculpa para dúvidas, e assumirá as suas responsabilidades.
 
Eu, por exemplo, sinto-me tentado neste momento, a prejudicar um bocado a minha saúde acendendo um cigarro (nacionalizado) — sei que me vai fazer mal, mas que ajudo ao mesmo tempo o Orçamento Nacional.
Estou advertido do perigo pessoal que corro. Mas aproveito,pela minha parte, para advertir o Ministro acerca do destino a dar à taxa resultante daquele meu sacrifício pessoal.
Atenção, Ernâni! Considere-se advertido!...