quinta-feira, 8 de março de 1984

Consultores

Esta é uma época do ano em que em Lisboa se adensa uma peculiar fauna, que aos olhos do alfacinha parece ser apenas uma variante da espécie turística (e, de certo modo, é-o!).
 

É o chamado «consultor», «perito», «professor convidado», etc.
 
Distingue-se do turista corrente que vem cá deixar dólares, marcos ou libras pelo seguinte: vem cá é sacá-los! Teoricamente, o consultor vem deixar experiências, ciência, técnica, sabedoria — mas a sua primeira e grande sabedoria é a de nunca ser pago em escudos.
O consultor pode vir a propósito de tudo: pode vir atender às necessidades do Pais em filosofia neokantiana, em melhoramento de galinhas poedeiras, em técnicas de fundição de materiais semi-condutores, em astronáutica elementar, em relações financeiras com o Noroeste Asiático, tudo. Pode vir às Universidades, aos departamentos de Estado, às grandes empresas públicas e privadas, às pequenas empresas que prestam serviços às grandes empresas (e que anunciam no Expresso e no Jornal).
Há um mercado internacional, bastante saturado e competitivo. O francês, de Paris ou das universidades de província, é o mais barato e mais comum para uso universitário; o inglês, de um modo geral, dá um bom consultor, sólido, chato, mas relativamente em conta; os técnicos holandeses, suecos e alemães são já mais caros mas de primeira categoria; o luxo, claro, é americanos. Japoneses não há. Consultores Russos há mas a gente não usa. Espanhóis e italianos até deve haver— mas quem é que se lembraria de apresentar um consultor espanhol? Os italianos agora, depois do Eco, não se sabe. Talvez.
Há quem use brasileiros mas, por amor de Deus! Vamos lá... é preciso cuidado. Quanto ao nosso próprio produto, tem sobretudo aceitação na Guiné e Cabo verde, e se for do LNEC, talvez até ao Paquistão e América Latina. Adiante.
 
Como se vê, o mercado é o mercado — não tem nada a ver com o real valor e competências — tem as suas regras próprias. Vejamos como funciona, em alguns aspectos fundamentais:
 
RECRUTAMENTO — O consultor aparece «por ser absolutamente indispensável o seu contributo para a elevação do nível da nossa investigação» (isto, por parte do técnico/investigador/ doutorando etc. que trabalhou com ele no estrangeiro, e que precisa dele aqui como prova viva do seu statu cientifico); aparece porque «É importante confrontar alguma experiência estrangeira com o nosso próprio nível de realizações» (isto, por parte dos departamentos públicos ou grandes empresas, para fazer ferro às outras e mostrar que estão na jogada); aparece porque «Com o seu indiscutível prestígio vem apoiar a nossa organização e mostrar os bons contactos que temos lá fora» (isto, por parte dos gabinetes de estudos e prestação de serviços que podem então pôr o seu nome em grandes letras nos anúncios).
Há, de certo modo, agências oficiais de consultores — a OCDE, os organismos da ONU, a CEE, os organismos profissionais internacionais. É-se menos enganado recrutando por aí os consultores. Por ajuste directo é sempre arriscado, no estado actual do mercado. Aparece cada vígaro que só visto!
 
ALIMENTAÇÃO — O consultor «sorbonnard» antropólogo ou metafísico leva-se ao Bairro Alto, às tascas e ao Fado: faz belas teses logo ali. O consultor Industrial ou de marketing — aos restaurantes dos hotéis, e depois ao Casino do Estoril ao strip-tease, e está certo. Os dos bancos e sociedades financeiras, à Tágide, ao Tavares ou ao Grémio.
 
COMPORTAMENTO — O elemento que conseguiu trazer o consultor afadigar-se-á pressuroso, Intimo e sorridente, mostrando-o como coisa sua, própria, por todo o lado enquanto ele cá está. Tratá-lo-á, na Universidade, por «mon cher Maître», ao que o «cher maître» responderá «Oui, mon cher-comment-vous-appelez-vous-dejá? Oui, bien sûr!...»
O consultor digno desse nome não procurará vender logo ali alguns volumes do seu último livro; dará sim alguns «hints» de que é absolutamente necessário mandá-los vir, se se quiser que a sua vinda frutifique.
 
FUNCIONAMENTO — O consultor dará as suas lições, palestras, ciclos, seminários etc, em linguagem clara e silabada (para os hotentotes perceberem). Dirá também algumas piadas simples, para mostrar que não é um tipo inacessível. Cada ciclo, seminário, lição, etc. corresponderá, de facto, aos primeiros capítulos da sua «opus magna» se por acaso ela existe, ou ao último artigo que publicou nas revistas da especialidade. Os hotentotes, provavelmente, àquela hora já leram a «opus magna» toda e já anotaram todos os pontos fracos e duvidosos, mas não se dão por achados porque nunca, nunca, se põe em xeque um consultor. Um dia, podemos nós ter que trazer o nosso próprio consultor e não queremos que os outros o ponham em xeque com perguntas inoportunas e embaraçosas.
Há maneiras para tudo entre gente civilizada, caramba!
 
CURRICULUM — O consultor acrescentará ao seu curriculum o ter dirigido/ assistido/ pronunciado/ aconselhado/ conduzido, a acção para que foi contratado. Convém dar-lhe um papelinho com a designação correcta, senão, um dia, ver-se-á no curriculum do gajo coisas deste tipo: «Directed seminar at Istitunto da Preduçao de Mila Hybrida do Portagala». E é chato. Nunca sabem onde estão e confundem-nos sempre com Espanha ou Marrocos. Portanto, leitor, já sabe: quando os vir sair, à noite para jantar, ali do Tivoli (hotel muito frequentado por consultores) não os trate mal nem tente (se essa for a sua actividade) impingir-lhes produtos locais tais como bordados da Madeira ou galos de Barcelos — pode ser que eles sejam peritos que nos vêm ensinar a produzir bordados da Madeira ou galos de Barcelos, e gerar-se-ão situações delicadas para todos.