No Cairo, tomei conhecimento
pelos jornais de que o presidente da Câmara de Roma, ia no dia 3 de Fevereiro a
Cartago, assinar o documento que põe fim às guerras Púnicas.
Exactamente, leu bem, leitor, «às
Guerras Púnicas»; aquelas que no Liceu começavam por — «Quando Hierão, Rei de
Siracusa...». As Guerras Púnicas não estavam oficialmente acabadas.
É um bom sinal dos tempos este;
buscar a forma da paz entre os povos, acabar com a guerra fria e as escaladas
do poder militar, começar uma real "détente", esquecer as
rivalidades.
Reagan, Thatcher e Gorbatchev
estão num modo feliz destes: dele é sorrisos, ele é promessas, ele é
negociações, etc. Todos querem resultados rápidos e tratados assinados logo
ali, à pressa, com o avião à espera e a TV impaciente.
Ora não pode ser assim.
Estas coisas levam tempo.
É preciso que as intenções de paz
fiquem bem claras e sem equívocos — para isso nada melhor do que deixar passar
um ou dois ou três ciclos históricos sobre certos acontecimentos desagradáveis.
Assim, Romanos e Cartagineses deixaram passar o fim do Império Romano, Bizâncio,
a Idade média, o Renascimento, a Reforma, a época do maquinismo e do
capitalismo manchesteriano, a nova época moderna com a queda dos impérios
coloniais, a 2ª e a 3ª revolução industriais, a exploração do espaço exterior,
tudo isto, enfim — de modo a que ficou estabelecido com a conveniente certeza
que não voltarão a aparecer por parte dos Romanos aqueles desagradáveis slogans
«DELENDA EST CARTHAGO!», e por parte dos Cartagineses acções nitidamente agressivas
com fez Aníbal passando os Alpes com elefantes estratégicos, e aquelas coisas
deploráveis em Canas e em Zama, não voltarão a repetir-se.
Agora finalmente os Cartagineses continuarão
a ter pouca água canalizada, saneamento básico terceiro-mundista, falta de
escolas e casas, fome sempre presente e doença crónica, mas dormirão
descansados sob uma grande, grande, reconfortável certeza: Roma não voltará A
destruir e salgar de novo os fundamentos da sua cidade; o Presidente Pertini,
velhinho simpático, não perseguirá os cavaleiros númidas de chapéu-de-chuva em
punho; «Delenda est Carthago and fuck you my baby» será talvez um título para
um rock punk mas não mais do que isso.
Por outro lado, os Cartagineses
abster-se-ão de invadir Roma com elefantes através dos Alpes. Não o poderão,
nem quererão agora fazer — mesmo porque além de não disporem de elefantes, os
direitos alfandegários e as inspecções sanitárias em França estão caríssimas.
Assim é que é bonito.
Leva tempo, mas quando a paz e a
concórdia reinam durante um mínimo de dez séculos, um tratado de paz sim, é um
tratado de paz, é uma coisa de confiança.
Agora: — tudo isto me faz pensar
no seguinte; em que estado ficaram as nossas relações com Ceuta? É certo que se
passeou ainda pouco tempo, as coisas estão vinda muito à flor da pele, houve atitudes
muito desagradáveis por parte da casa de Aviz, mas por outro lado, aquela
história com o Infante D. Fernando caiu sempre muito mal, cá.
Parece-me que não é ainda a
altura do Abecasis ir a Ceuta assinar um tratado de paz (mas talvez se pudesse já
fazer um «constat d’accord» como se usa fazer agora, com seiscentos diabos! — não
serve para nada mas sempre era um gesto, uma manifestação de boa vontade e depois,
daqui a uns duzentos anos poderia começar-se a negociar um tratado preliminar).
É assim que estas coisas se fazem. E que jantares, que recepções, que
condecorações, que troca de presentes!...
É feita disto a vida diplomática
internacional — e quanto mais aparentemente longínqua, abstrusa e privada de
significados práticos mais se Justifica. (O que é preciso é tirar aos
diplomatas qualquer assunto concreto e importante da vida contemporânea — são
um desastre constante e uma anedota permanente e perigosa, como qualquer pessoa
que tenho tido que lidar com eles acaba por perceber. Mas são encantadores nos
salões...)
Outra coisa: não seria esta a
ocasião (até como condição prévia para essa história da CEE) exigir de Bonn e
de Bruxelas as indemnizações devidas pelo comportamento dos Vândalos, Suevos,
Alanos e Alamanos quando por aqui andaram sem o prévio acordo do estatuto
turístico — e é tudo gente cujas responsabilidades foram herdadas pelos países
da CEE?
Poderia exigir-se essa
indemnização sob a forma de negociação conjunta e coordenada dos fundos de
pré-adesão e do FEDER, FEOGA e Fundo Social, o que a Comissão não parece estar
a fazer...
Isto, a História ou se leva a
sério, ou não.
Os Romanos e os Cartagineses,
pelo menos, deram uma grande lição de coerência.