quarta-feira, 21 de março de 1984

História e diplomacia

No Cairo, tomei conhecimento pelos jornais de que o presidente da Câmara de Roma, ia no dia 3 de Fevereiro a Cartago, assinar o documento que põe fim às guerras Púnicas.
Exactamente, leu bem, leitor, «às Guerras Púnicas»; aquelas que no Liceu começavam por — «Quando Hierão, Rei de Siracusa...». As Guerras Púnicas não estavam oficialmente acabadas.
 
É um bom sinal dos tempos este; buscar a forma da paz entre os povos, acabar com a guerra fria e as escaladas do poder militar, começar uma real "détente", esquecer as rivalidades.
Reagan, Thatcher e Gorbatchev estão num modo feliz destes: dele é sorrisos, ele é promessas, ele é negociações, etc. Todos querem resultados rápidos e tratados assinados logo ali, à pressa, com o avião à espera e a TV impaciente.
 
Ora não pode ser assim.
Estas coisas levam tempo.
É preciso que as intenções de paz fiquem bem claras e sem equívocos — para isso nada melhor do que deixar passar um ou dois ou três ciclos históricos sobre certos acontecimentos desagradáveis. Assim, Romanos e Cartagineses deixaram passar o fim do Império Romano, Bizâncio, a Idade média, o Renascimento, a Reforma, a época do maquinismo e do capitalismo manchesteriano, a nova época moderna com a queda dos impérios coloniais, a 2ª e a 3ª revolução industriais, a exploração do espaço exterior, tudo isto, enfim — de modo a que ficou estabelecido com a conveniente certeza que não voltarão a aparecer por parte dos Romanos aqueles desagradáveis slogans «DELENDA EST CARTHAGO!», e por parte dos Cartagineses acções nitidamente agressivas com fez Aníbal passando os Alpes com elefantes estratégicos, e aquelas coisas deploráveis em Canas e em Zama, não voltarão a repetir-se.
Agora finalmente os Cartagineses continuarão a ter pouca água canalizada, saneamento básico terceiro-mundista, falta de escolas e casas, fome sempre presente e doença crónica, mas dormirão descansados sob uma grande, grande, reconfortável certeza: Roma não voltará A destruir e salgar de novo os fundamentos da sua cidade; o Presidente Pertini, velhinho simpático, não perseguirá os cavaleiros númidas de chapéu-de-chuva em punho; «Delenda est Carthago and fuck you my baby» será talvez um título para um rock punk mas não mais do que isso.
Por outro lado, os Cartagineses abster-se-ão de invadir Roma com elefantes através dos Alpes. Não o poderão, nem quererão agora fazer — mesmo porque além de não disporem de elefantes, os direitos alfandegários e as inspecções sanitárias em França estão caríssimas.
Assim é que é bonito.
Leva tempo, mas quando a paz e a concórdia reinam durante um mínimo de dez séculos, um tratado de paz sim, é um tratado de paz, é uma coisa de confiança.
 
Agora: — tudo isto me faz pensar no seguinte; em que estado ficaram as nossas relações com Ceuta? É certo que se passeou ainda pouco tempo, as coisas estão vinda muito à flor da pele, houve atitudes muito desagradáveis por parte da casa de Aviz, mas por outro lado, aquela história com o Infante D. Fernando caiu sempre muito mal, cá.
Parece-me que não é ainda a altura do Abecasis ir a Ceuta assinar um tratado de paz (mas talvez se pudesse já fazer um «constat d’accord» como se usa fazer agora, com seiscentos diabos! — não serve para nada mas sempre era um gesto, uma manifestação de boa vontade e depois, daqui a uns duzentos anos poderia começar-se a negociar um tratado preliminar). É assim que estas coisas se fazem. E que jantares, que recepções, que condecorações, que troca de presentes!...
É feita disto a vida diplomática internacional — e quanto mais aparentemente longínqua, abstrusa e privada de significados práticos mais se Justifica. (O que é preciso é tirar aos diplomatas qualquer assunto concreto e importante da vida contemporânea — são um desastre constante e uma anedota permanente e perigosa, como qualquer pessoa que tenho tido que lidar com eles acaba por perceber. Mas são encantadores nos salões...)
Outra coisa: não seria esta a ocasião (até como condição prévia para essa história da CEE) exigir de Bonn e de Bruxelas as indemnizações devidas pelo comportamento dos Vândalos, Suevos, Alanos e Alamanos quando por aqui andaram sem o prévio acordo do estatuto turístico — e é tudo gente cujas responsabilidades foram herdadas pelos países da CEE?
Poderia exigir-se essa indemnização sob a forma de negociação conjunta e coordenada dos fundos de pré-adesão e do FEDER, FEOGA e Fundo Social, o que a Comissão não parece estar a fazer...
Isto, a História ou se leva a sério, ou não.
Os Romanos e os Cartagineses, pelo menos, deram uma grande lição de coerência.