sexta-feira, 27 de abril de 1984

Empresa Nacional de Cultura (EP)

«Cultura» é que é, hoje.
 
Houve tempo em que qualquer discussão sobre qualquer assunto acabava sempre por -«Ah! no fundo é tudo um problema de economia - o económico é tudo!»
Depois, acabava-se por: «Deixemo-nos de coisas; por mais que se queira, tudo se reconduz a urna questão política» («Politique d'abord», maurrassianamente, chegou cá um bocado tarde - por causas óbvias, presumo que só dentro da União Nacional se podia falar assim em voz alta).
 
Agora é diferente. Quando se estabelece o silêncio ominoso em torno do problema insolúvel ou da questão embaraçosa, o bom tom é dizer gravemente: - «Cultural. Tudo se resume a um problema cultural, no fundo» (isto, mesmo que se trate da dívida externa ou da produção de plásticos por extrusão).
 
Usando então daquela enorme capacidade de síntese que os meus amigos me reconhecem desde a infância ou que eu gostava que me reconhecessem, ou que pelo menos me dessem uma esperança, eu avanço com uma proposta. Uma proposta que tem a beleza de ser simultaneamente económica, política e cultural: a formação da EMPRESA NACIONAL DE CULTURA, como empresa pública.
Uma empresa, com a sua lógica e dinâmica próprias, pode activar, financiar, organizar e promover os aspectos da vida da sociedade portuguesa que os ministérios, demasiadamente ocupados com os aspectos administrativos e burocráticos correntes não podem assegurar (devendo no entanto continuar a fazê-lo como base estável e executiva da máquina da administração pública). Um jurista administrativo atento verá que basta passar as atribuições e poderes da antiga JNE ou do actual IPPC para um instituto púbico com autonomia financeira e juntar-lhe mais umas quantas clausulazitas para ficar quase pronta a estrutura que eu proponho. Nem sequer é difícil. É assim uma solução eminentemente política.
Por outro lado, com capacidade para receber verbas próprias por via de transferências e comparticipações em lucros, fica também com capacidade para injectar no sistema investimentos e fundos com critérios empresariais de eficácia (que já se viu que a máquina do Estado não tem!...). É assim una solução eminentemente económica. As direitas, o CDS e o prof. Alfredo de Sousa nada teriam a objectar a esta visão.
Pôr a imaginação, a criatividade, a erudição e a sensibilidade nos pontos-chave da vida nacional, independentemente de pseudo-competências profissionais e especialidades (que tem arruinado a nossa vida publica), é uma atitude eminentemente cultural. Tudo é cultura!
Uma espécie de super-Gulbenkian, nacional, púbica, total, sem a minhoquice e o limitado escopo da FCG. É preciso ver em grande!
 
Imagine-se então!
Imagine-se só o que poderia ser. Que esperança de renovação, que rajada de ar fresco!
 
Os problemas da indústria pesada, construção e reparação naval e siderurgia são de uma complexidade que vai buscar as suas raízes muito fundo; exigem uma capacidade de análise e perspectivação que os tecnocratas que estão mergulhados no concreto daquelas situações não podem materialmente ter. Ai, eu veria muito bem, p. ex., Eduardo Lourenço. Em Sines, Herberto Helder.
Nas Finanças, domínio acentuadamente esotérico e trans-realista, já se viu por de mais o que os especialistas de ato cotumo que por lá têm passado conseguiram fazer. Ali quer-se outra coisa. Poria as minhas esperanças mais em alguém com o perfil de Alexandre O'Neill, para abrir novos caminhos. A agricultura, agarrada por Abelaira ou E. Prado Coelho, levava uma volta, lá isso levava. Agricultura até, como o nome diz, é cultura; e eles têm distanciamento crítico suficiente do mundo rural para o entender nas suas estruturas, imagética e significantes.
Quanto ao Plano Energético, pergunto a mim mesmo se as indecisões, nebulosidades, dificuldade na tomada de resoluções no momento certo e isso tudo não precisam de alguém com sensibilidade, coragem e máximo sentido do tempo. Maria João Pires estaria disponível? Se alguém julga que atacar no momento justo a decisão entre o térmico e o nuclear é mais difícil do que atacar um «fortíssimo» num concerto beethoveniano, é que não é uma pessoa culta.

 
 À Sophia de Mello Breyner eu confiaria, de caras, a orientação da electrónica e a entrada pelas médias tecnologias, agora que parece avizinhar-se a CEE. Não é, certamente, a tribo do transistor e do «byte», que tem visão e criatividade para isso, dentro do seu horizonte de «micro-chips». Sophia, evidentemente, não teria que escrever em Fortran ou Cobol; para isso lá estão eles.
Romper a «grisaille», da Educação, a inércia, a falta de inventiva... Ohl há tanto por onde escolher: Solnado, Zeca Afonso, Eunice... Apoiados em meios e técnica empresarial dariam a este País, finalmente, uma educação.
Agustina, conduzindo sibilinamente as relações e exteriores através da fenda na muralha; Eugénio de Andrade, com a sua autoridade e visão, pondo ordem na Saúde e Assistência: a imaginação ao Poder, definitivamente, como se reclamava em 1968 mas não se fez nada depois (os revolucionários fizeram-se escriturários - os que restam são os do tipo que indico, os que não se venderam...)
Mas há áreas culturais que têm estado erradamente confiadas a intelectuais e contemplativos ineficazes - aí, requerem-se outros perfis: a busca lenta e cuidadosa de obras de jovens autores não publicados, o apoio e promoção das pequenas colectividades locais, o auxílio discreto e eficaz à banda desenhada e ao cinema amador (Veiga Simão? Rocha de Matos?); o apoio à música erudita, à investigação arqueológica, às academias e associações não lucrativas com finalidade cultural (Ernâni Lopes?).
 
Tudo é Cultura. Tudo, no fundo, é Cultura.
 
Ponham-se as pessoas certas nos lugares certos (que nem sempre são os que parecem), e dêem-se-lhes meios. Então teremos outro País.
 
Agora, atenção! No caso, improvável, mas possível de a ENC (EP) vir a dar lucros, nunca, nunca deveria ser desnacionalizada e vendida ao grupo Champalimaud, ou outro.