sábado, 28 de janeiro de 1984

Os pobos do norte

Desenha-se a convocação, lá em cima, de um congresso dos Povos do Norte.
 

Sou, com tantos aborígenes de Campolide (Lisboa), descendente não muito longínquo de mouros — até os meus filhos têm ainda patentes os traços fisionómicos dos meus avós do deserto escaldante. Assim, um certo atavismo faz perpassar por mim um frémito quando considero as hordas de grossos bárbaros louros, sanguinários, desgrenhados e sujos, vestidos de correias de couro e chaparia de ferro, com as bigodaças cheias de restos de gordura de onagro e de urso— que, à pala de usarem uma cruz azul nas cotas de armas, escavacaram tudo o que existia de belo e superior na Lisboa mourisca.
 
Eram «Povos do Norte», ou »Nordmen», ou normandos.
 
Leia-se a carta do insuspeito cruzado Osberno, em que relata a conquista de Lisboa, quem eram ali os homens superiores? Quem teve até à última a dignidade de defender a razão, a civilização e a cultura?
Deus estava do seu lado, diziam os cruzados. Nas batalhas, Deus tende a estar do lado dos grandes batalhões, dizia Frederico II da Prússia. Ainda hoje, na Sua infinita sabedoria, está quase sempre do lado que tem maior poder de fogo, e sabem-no bem os homens piedosos do Pentágono. Os do Kremlin, nem contam, porque são ateus e materialistas.
Mas voltando aos bárbaros do Norte, não lhes perdoo o terem destruído e saqueado uma cidade onde florescia uma poesia lírica, uma arte requintada, uma maneira de viver que não poderiam sequer entender, quanto mais praticar. Mas gosto muito dos meus amigos nortenhos, entenda-se; e além do mais no Porto come-se muito bem. Assim, a perspectiva e a equidade histórica ficam restabelecidas.
 
 
Se brinco com estas coisas, é porque hoje são coisas com as quais se pode brincar, e até se deve, porque é evidente que tudo aquilo é do passado, somos todos igualmente portugueses — e deveremos continuar a sê-lo. Mas isso quer dizer também que se deve ter cuidado com não brincar tomando-o a sério, com aquele passado, ainda que sob formas oblíquas e não totalmente inocentes.
É perturbador, portanto, toda e qualquer acção que tenda a despertar valores míticos, irracionais e obscuros, estimulando o inconsciente colectivo no que ele tem de mais perigoso: a capacidade de segregar um grupo, apontando-lhe como razão de ser da sua coerência o mito ou mistério da «alteridade» exterior.
O «outro», o «que não é como nós» passa, depois de um tempo de fermentação, a ser «o que não está connosco» e depois, rapidamente, «o que está contra nós».
É assim, por exemplo, que fermenta por ai e já está a azedar, a intensa recuperação da noção do «país real», contraposto a uma «alteridade» que é, evidentemente, Lisboa e o seu cortejo fantasmagórico de ilusões chamadas ministérios, centros de decisão, antecâmaras do poder. Um dia toda essa torpe ilusão se desvanecerá, para aparecer límpido, são, virtuoso, o «pais real». Provavelmente nortenho, e até um bocadinho insular, creio. Esquecem-se já as pessoas de que «Le pays réel» era o jornal dos rexistas do fascista Degrelle aí na Bélgica de 1936, e estas coisas contam. As palavras contam.
 
Todas estas solicitações ao irracional e ao sentimental são perigosas porque não se sabe nunca onde vão parar.
 
Que a Comissão de Coordenação da Região Norte esteja a sentir crescentes dificuldades quanto à coesão interna da futura Região Norte perante a emergência de localismos e bairrismos; que o Porto e o seu patético homem se vejam contestados pelo interior da região e queiram reafirmar a sua liderança com uma realização de prestígio; que o industrial de Santo Tirso tenha vistas políticas de nível nacional e partidário, é evidente e é natural. Que defendam os seus interesses e procurem o seu melhor caminho, é legítimo, e até bom e saudável, se o fizerem num ambiente de debate, lucidez e clareza.
 
Que se aproximem (conscientemente?) da manipulação velada de mitos — isso é perigoso.