Desenha-se a convocação, lá em
cima, de um congresso dos Povos do Norte.
Sou, com tantos aborígenes de
Campolide (Lisboa), descendente não muito longínquo de mouros — até os meus
filhos têm ainda patentes os traços fisionómicos dos meus avós do deserto
escaldante. Assim, um certo atavismo faz perpassar por mim um frémito quando
considero as hordas de grossos bárbaros louros, sanguinários, desgrenhados e
sujos, vestidos de correias de couro e chaparia de ferro, com as bigodaças
cheias de restos de gordura de onagro e de urso— que, à pala de usarem uma cruz
azul nas cotas de armas, escavacaram tudo o que existia de belo e superior na
Lisboa mourisca.
Eram «Povos do Norte», ou
»Nordmen», ou normandos.
Leia-se a carta do insuspeito
cruzado Osberno, em que relata a conquista de Lisboa, quem eram ali os homens
superiores? Quem teve até à última a dignidade de defender a razão, a
civilização e a cultura?
Deus estava do seu lado, diziam
os cruzados. Nas batalhas, Deus tende a estar do lado dos grandes batalhões,
dizia Frederico II da Prússia. Ainda hoje, na Sua infinita sabedoria, está
quase sempre do lado que tem maior poder de fogo, e sabem-no bem os homens
piedosos do Pentágono. Os do Kremlin, nem contam, porque são ateus e
materialistas.
Mas voltando aos bárbaros do
Norte, não lhes perdoo o terem destruído e saqueado uma cidade onde florescia
uma poesia lírica, uma arte requintada, uma maneira de viver que não poderiam
sequer entender, quanto mais praticar. Mas gosto muito dos meus amigos
nortenhos, entenda-se; e além do mais no Porto come-se muito bem. Assim, a
perspectiva e a equidade histórica ficam restabelecidas.
Se brinco com estas coisas, é
porque hoje são coisas com as quais se pode brincar, e até se deve, porque é
evidente que tudo aquilo é do passado, somos todos igualmente portugueses — e
deveremos continuar a sê-lo. Mas isso quer dizer também que se deve ter cuidado
com não brincar tomando-o a sério, com aquele passado, ainda que sob formas
oblíquas e não totalmente inocentes.
É perturbador, portanto, toda e
qualquer acção que tenda a despertar valores míticos, irracionais e obscuros,
estimulando o inconsciente colectivo no que ele tem de mais perigoso: a
capacidade de segregar um grupo, apontando-lhe como razão de ser da sua
coerência o mito ou mistério da «alteridade» exterior.
O «outro», o «que não é como nós»
passa, depois de um tempo de fermentação, a ser «o que não está connosco» e
depois, rapidamente, «o que está contra nós».
É assim, por exemplo, que
fermenta por ai e já está a azedar, a intensa recuperação da noção do «país
real», contraposto a uma «alteridade» que é, evidentemente, Lisboa e o seu
cortejo fantasmagórico de ilusões chamadas ministérios, centros de decisão,
antecâmaras do poder. Um dia toda essa torpe ilusão se desvanecerá, para
aparecer límpido, são, virtuoso, o «pais real». Provavelmente nortenho, e até
um bocadinho insular, creio. Esquecem-se já as pessoas de que «Le pays réel»
era o jornal dos rexistas do fascista Degrelle aí na Bélgica de 1936, e estas
coisas contam. As palavras contam.
Todas estas solicitações ao
irracional e ao sentimental são perigosas porque não se sabe nunca onde vão
parar.
Que a Comissão de Coordenação da
Região Norte esteja a sentir crescentes dificuldades quanto à coesão interna da
futura Região Norte perante a emergência de localismos e bairrismos; que o
Porto e o seu patético homem se vejam contestados pelo interior da região e
queiram reafirmar a sua liderança com uma realização de prestígio; que o
industrial de Santo Tirso tenha vistas políticas de nível nacional e partidário,
é evidente e é natural. Que defendam os seus interesses e procurem o seu melhor
caminho, é legítimo, e até bom e saudável, se o fizerem num ambiente de debate,
lucidez e clareza.
Que se aproximem
(conscientemente?) da manipulação velada de mitos — isso é perigoso.