A geologia do subsolo de Lisboa é
variada e complexa. Há zonas de espessas camadas de rochas calcárias, há zonas
de rochas eruptivas, basaltos sobretudo, há zonas de tufos vulcânicos, há zonas
de margas, há zonas, enfim, de quase tudo o que é rocha. Uma alegria. Um dia
grande para os geólogos. Mas um quebra-cabeças para os engenheiros...
Se o leitor for espreitar a um
daqueles estaleiros de grandes prédios quando se escavam as fundações (e
algumas são autênticos precipícios vertiginosos) não se entretenha só a ver o
espectáculo das máquinas escavadoras - repare para o tipo de subsolo que fica à
vista. Na zona das Avenidas Novas reparará certamente que logo a partir da
superfície aparece uma fatia de muitos metros de barro cinzentinho ou
amarelado, lindo. E umas coisas que parecem barros misturados com areias, e umas
pastas acastanhadas ou escuras. Deixe aos geólogos o cuidado de lhes chamar
nomes - chame-lhes de um modo geral «argilas».
O caso é que as argilas,
carregadas de água, são plásticas, «fluem» sob as pressões. Imagine o leitor
que põe uma garrafa sobre um daqueles queijos da Serra dos bons, amanteigado: a
garrafa mantém-se direitinha, ali, como se estivesse em cima da mesa. Mas se
encetar o queijo, cortando-lhe uma fatia, no dia seguinte o queijo faz uma
grande barriga, todo descaído - e a garrafa cai. Coma então o queijo mas não se
esqueça da lição: as argilas, se estiverem contidas e quietas não fluem, mas se
lhes abrirem cortes gigantescos, acabam por fazer também barriga e descair. Oh!
Muito poucochinho, talvez! Mas poucos milímetros (que o leitor nem verá, nem os
escoramentos que se fazem chegam para evitar) provocam «ASSENTAMENTOS» nas
fundações dos prédios contíguos. Esses «assentamentos», que é como se chama aos
ligeiros afundamentos das fundações dos edifícios, podem atacar sub-repticiamente
a sua estabilidade.
As argilas húmidas misturadas com
areias, ou as próprias areias, também têm um mau hábito: - são «tixotrópicas»,
palavrão que quer dizer que, se estiverem quietinhas, tudo bem, são firmes; mas
se sofrem tremuras ou vibrações, comportam-se como fluidos - «fluem».
Portanto, umas Avenidas
construídas sobre terrenos argilosos, esburacados por frequentes obras de
infra-estruturas várias e de redes de serviços, metropolitano, e caves para estacionamento
que parecem ir até ao centro da Terra, sacudidos por permanentes vibrações do
Metro e dos autocarros e camiões pesadíssimos, estas Avenidas, leitor, não
estão nas melhores condições para garantir a permanência da produção dos esforçados
«gaioleiros».
Com tudo isto, o inevitável
dá-se.
Esses «assentamentos», que é como se chama aos ligeiros afundamentos das fundações dos edifícios, podem atacar, sub-repticiamente a sua estabilidade.
Com crescente frequência, lá vem
a notícia no jornal: «Um prédio na Avenida X ruiu esta madrugada, obrigando à evacuação
rápida de X famílias etc., etc.» O leitor, curioso, vai lá ver, e parece-lhe
que o prédio continua em pé! O que vem a ser isto? Caiu, ou não?
A gaiola pombalina foi concebida
para que, em caso de sismo, se as paredes ruíssem, a gaiola ficasse de pé. Mas
as gaiolas da zona do Plano Ressano Garcia não caem por causa dos sismos - caem
por enfraquecimento e apodrecimento, caem por dentro, ingloriamente. As fachadas,
normalmente, lá continuam, como se até na desgraça quisessem conservar o decoro
e a etiqueta do «parece bem» que reinavam nos tempos em que foram construídas.
O que importa hoje não é a
preocupação com as boas maneiras hipócritas; o que importa é examinar com
clareza, rigor e coragem uma situação que vai agravar-se rapidamente no próximo
decénio.
É preciso «um longo e duro olhar»
para esta realidade: avaliar o número dos prédios irremediavelmente condenados;
o dos que exigem reparações estruturais (deixem as limpezas e as pinturices
para outra altura!...) e que ainda possam então ter mais uns vinte anos de vida
útil; o número dos que não exigem reparações de fundo imediatas, mas não devem
ser substituídos por construção especulativa para fins farejados a não ser por
evidente imperativo económico.
De nada valerá (ou de muito pouco
valerá) tentar colmatar a carência de habitação abrindo novas frentes de urbanização
e construindo «ex-novo», se por outro lado se vai deixando ao abandono e à ruina
um dos nacos mais significativos do «stock» edificado da cidade - e como se
disse ao princípio, não se trata só das Avenidas Novas. O leitor reconhecerá
por certo as situações descritas, em muitas outras zonas de Lisboa.
A indústria da construção está em
crise - é o que não se cansam de nos dizer os seus dirigentes todos os dias e
por todos os meios. Há centos de pequenas empresas de médio porte,
perfeitamente dimensionadas para operações de consolidação e reparação. Onde é
que se meteram os descendentes dos homens de Tomar que fizeram esta Lisboa?
Será que já só sabem encher as Odivelas, os Carenques, as Almadas e Laranjeiras
com os horrores de 4 andares do lucro fácil e da especulação com os terrenos
agrícolas das periferias? Ou já estão todos em conselhos de administração de
grandes imobiliárias, interessadas só nas grandes operações de luxo?
Mas que para enfrentar uma situação
destas faz aqui falta um Pombal, acompanhado de um Maia, um Santos e um Mardel,
isso faz, e ainda não se viu que já tivessem chegado...