quarta-feira, 11 de janeiro de 1984

As Avenidas que caem (2)

No número anterior ficou a questão: o que é isso de «gaiola»?
 
Pois bem. Depois do terramoto de 1755, quando Pombal iniciou a reconstrução de Lisboa, chamou, como todos os meninos da escola sabem, Manuel da Maia, ajudado por Eugénia dos Santos e o húngaro aportuguesado Carlos Mardel; fantástico trio que faria bastante falta cá, hoje!
Estes homens, auxiliados pelos anónimos desenhadores e peritos da Sala do Risco, não se sabe bem como, mas provavelmente por tentativas e aproximações, observando o modo como ruíram as paredes de alvenaria sob o efeito das sacudidelas do sismo, e tendo como obrigação estudar formas de obviar àqueles efeitos no futuro, tiveram uma percepção perfeitamente genial: a de que em vez de procurar resistir aos abalos sísmicos pela força, era preferível resistir-lhes pela flexibilidade.
Em vez de construir a nova Baixa da cidade como antes se construía, isto é, com as paredes suportando o peso dos pavimentos, resolveram construir o «miolo» das casas como um cesto ou engradado ou «gaiola» leve de madeira, e fazer as paredes interiores muito leves, também de madeira. Assim, perante um sismo, tudo pode abanar e abrir rachas, mas não se esbarronda. Mesmo se as paredes exteriores aluírem, a «gaiola», flexível, fica de pé e salvam-se vidas, pelo menos! Veja-se o esquema seguinte: para esclarecer melhor o que se disse:
 
É assim que está construida a Baixa Lisboeta pombalina! Sim, nesse tempo, Portugal esteve na ponta do progresso técnologico - Não o devemos esquecer, e meditar nisso...
 
Ora, séculos mais tarde, para construir muito e depressa, em edifícios altos e feitos para ganhar dinheiro, nada melhor se arranjou do que recuperar a «gaiola- pombalina». É portanto aqui que entram os «gaioleiros de Tomar», os «patos bravos». À «gaiola» ficou ligado (sem inteira justiça, como se verá) uma conotação tão pejorativa como a da designação de «pato bravo», também ela marcada por certa injustiça.
 
É má a «gaiola»?
Pois bem, deve responder-se: é, e não é.
É má, se não for bem conservada; é boa se o for.
A madeira, bem seca, de boa qualidade e bem protegida pela argamassa, dura eternidades, neste tipo de construção, é essencial que a argamassa envolva e cubra completamente a estrutura de madeira, sem fissuras nem lacunas. Mas se a água, os microrganismos e os parasitas lá chegam, a estabilidade fica em risco. Vejamos um prédio dos «gaioleiros de Tomar», por dentro.
 
Um prédio dos «gaioleiros de Tomar»
 
Vemos uma estrutura de prumos de madeira e travessanhos, ou vigas, travadas ou «contraventadas» por cruzetas escondidas dentro dos tabiques, ou «frontais à galega» (paredes delgadas constituídas por ripas revestidas de argamassa de cal e estucadas). Vemos paredes da fachada e do tardoz (as traseiras, como se lhe costuma chamar), onde se apoiam vigamentos dos pavimentos (coisa que os mestres pombalinos evitavam, mas os «patos bravos» fizeram, e agora dão mau resultado, como se verá). Vemos os telhados apoiados nesta gaiola, mas com as águas recolhidas em algerozes de zinco atrás da platibanda da fachada. Vemos escadas de serviço e varandas das cozinhas feitas de ferro e betonilha. Vemos esgotos metidos um bocado ao acaso nos saguões e nas paredes das traseiras, em manilhas de cerâmica pouco cuidada e mal segura.
Mas no próprio boneco estão apontados os pontos fracos ou vulneráveis da construção: os algerozes metem água, que vai apodrecer a madeira dos topos das vigas: as manilhas dos esgotos deixam passar supurações que se infiltram e vão causar maus cheiros, o que é incómodo, mas sobretudo vai criar condições para o aparecimento de fungos e bactérias que apodrecem a madeira; nas caves, a humidade e a falta de ventilação têm efeito semelhante.
Se a base dos prumos, ou qualquer ponto intermédio é enfraquecido pelo apodrecimento, pelos carunchos ou por fractura, toda a «gaiola» cede, deforma-se, enfraquece. Então, o morador começa a verificar coisas estranhas: as portas não fecham bem, porque os seus aros não estão bem rectangulares; os armários inclinam-se para dentro das salas porque o chão fica desnivelado; os tabiques abrem rachas muito características, oblíquas, a partir dos cantos e das bandeiras das portas.
Quando o proprietário faz as obrigatórias obras de limpeza e conservação, tudo fica pintadinho, limpo e catita — à superfície. É cosmética; útil, mas apenas cosmética, se os elementos estruturais não forem reparados.
 
Mas há outras causas de enfraquecimento das casas das Avenidas Novas, que podem ou não juntar-se a estas. Dar-se-lhes-á uma olhadela no próximo número, para que estas notas não fiquem demasiadamente massudas.