No número anterior ficou a
questão: o que é isso de «gaiola»?
Pois bem. Depois do terramoto de
1755, quando Pombal iniciou a reconstrução de Lisboa, chamou, como todos os meninos
da escola sabem, Manuel da Maia, ajudado por Eugénia dos Santos e o húngaro
aportuguesado Carlos Mardel; fantástico trio que faria bastante falta cá, hoje!
Estes homens, auxiliados pelos
anónimos desenhadores e peritos da Sala do Risco, não se sabe bem como, mas provavelmente
por tentativas e aproximações, observando o modo como ruíram as paredes de
alvenaria sob o efeito das sacudidelas do sismo, e tendo como obrigação estudar
formas de obviar àqueles efeitos no futuro, tiveram uma percepção perfeitamente
genial: a de que em vez de procurar resistir aos abalos sísmicos pela força,
era preferível resistir-lhes pela flexibilidade.
Em vez de construir a nova Baixa
da cidade como antes se construía, isto é, com as paredes suportando o peso dos
pavimentos, resolveram construir o «miolo» das casas como um cesto ou engradado
ou «gaiola» leve de madeira, e fazer as paredes interiores muito leves, também
de madeira. Assim, perante um sismo, tudo pode abanar e abrir rachas, mas não
se esbarronda. Mesmo se as paredes exteriores aluírem, a «gaiola», flexível,
fica de pé e salvam-se vidas, pelo menos! Veja-se o esquema seguinte: para
esclarecer melhor o que se disse:
É assim que está construida a Baixa Lisboeta pombalina! Sim, nesse tempo, Portugal esteve na ponta do progresso técnologico - Não o devemos esquecer, e meditar nisso...
Ora, séculos mais tarde, para
construir muito e depressa, em edifícios altos e feitos para ganhar dinheiro,
nada melhor se arranjou do que recuperar a «gaiola- pombalina». É portanto aqui
que entram os «gaioleiros de Tomar», os «patos bravos». À «gaiola» ficou ligado (sem inteira justiça, como se verá)
uma conotação tão pejorativa como a da designação de «pato bravo», também ela
marcada por certa injustiça.
É má a «gaiola»?
Pois bem, deve responder-se: é, e
não é.
É má, se não for bem conservada;
é boa se o for.
A madeira, bem seca, de boa qualidade
e bem protegida pela argamassa, dura eternidades, neste tipo de construção, é
essencial que a argamassa envolva e cubra completamente a estrutura de madeira,
sem fissuras nem lacunas. Mas se a água, os microrganismos e os parasitas lá
chegam, a estabilidade fica em risco. Vejamos um prédio dos «gaioleiros de
Tomar», por dentro.
Um prédio dos «gaioleiros de Tomar»
Vemos uma estrutura de prumos de
madeira e travessanhos, ou vigas, travadas ou «contraventadas» por cruzetas
escondidas dentro dos tabiques, ou «frontais à galega» (paredes delgadas
constituídas por ripas revestidas de argamassa de cal e estucadas). Vemos
paredes da fachada e do tardoz (as traseiras, como se lhe costuma chamar), onde
se apoiam vigamentos dos pavimentos (coisa que os mestres pombalinos evitavam,
mas os «patos bravos» fizeram, e agora dão mau resultado, como se verá). Vemos
os telhados apoiados nesta gaiola, mas com as águas recolhidas em algerozes de
zinco atrás da platibanda da fachada. Vemos escadas de serviço e varandas das
cozinhas feitas de ferro e betonilha. Vemos esgotos metidos um bocado ao acaso
nos saguões e nas paredes das traseiras, em manilhas de cerâmica pouco cuidada
e mal segura.
Mas no próprio boneco estão
apontados os pontos fracos ou vulneráveis da construção: os algerozes metem
água, que vai apodrecer a madeira dos topos das vigas: as manilhas dos esgotos
deixam passar supurações que se infiltram e vão causar maus cheiros, o que é
incómodo, mas sobretudo vai criar condições para o aparecimento de fungos e
bactérias que apodrecem a madeira; nas caves, a humidade e a falta de
ventilação têm efeito semelhante.
Se a base dos prumos, ou qualquer
ponto intermédio é enfraquecido pelo apodrecimento, pelos carunchos ou por
fractura, toda a «gaiola» cede, deforma-se, enfraquece. Então, o morador começa
a verificar coisas estranhas: as portas não fecham bem, porque os seus aros não
estão bem rectangulares; os armários inclinam-se para dentro das salas porque o
chão fica desnivelado; os tabiques abrem rachas muito características,
oblíquas, a partir dos cantos e das bandeiras das portas.
Quando o proprietário faz as
obrigatórias obras de limpeza e conservação, tudo fica pintadinho, limpo e
catita — à superfície. É cosmética; útil, mas apenas cosmética, se os elementos
estruturais não forem reparados.
Mas há outras causas de
enfraquecimento das casas das Avenidas Novas, que podem ou não juntar-se a
estas. Dar-se-lhes-á uma olhadela no próximo número, para que estas notas não
fiquem demasiadamente massudas.