Refiro-me às Avenidas novas. É
claro que não são as Avenidas o que cai, mas sim os prédios, e convém esclarecer
que sob o nome de Avenidas Novas se entende em geral aquela zona de Lisboa
crescida no planalto de boas terras de trigo que se entendia entre a colina das
Picoas e o Campo Grande, depois da Primeira Grande Guerra. E o que se vai dizer
destes prédios vale para muitos outros em Lisboa: os da metade de Campo de
Ourique que fica entre o Jardim da Parada e a Ferreira Borges; os que ficam
entre o Calvário e a Tapada da Ajuda; parte dos da Almirante Reis e da zona das
Olaias, etc. Que prédios são estes? Como foram construídos? Por quem? Para
quem?
Ao acabar a Primeira Guerra
Mundial, deram-se modificações importantes na sociedade portuguesa. Houve enriquecimentos
súbitos de certa burguesia através da especulação; houve um grande abandono da
terra por parte de agrários que preferiam o enriquecimento através da renda ao enriquecimento
através do lucro (que diminuía rapidamente) da exploração. Muitas terras foram vendidas
ou abandonadas a rendeiros locais e muitos capitais foram canalizados para o
«boom» de construção que se desenhava em Lisboa.
Aí, uma nova classe endinheirada
procurava residência — ou construindo palacetes e moradias, ou alugando andares
— e essa residência macaqueava a ideia que essas novas classes faziam da vida
aristocrática e da moda importada de França. Queriam-se então salas de visita
pomposas forradas a imitação de damasco, e os inevitáveis escritórios com
móveis de mogno, escuros e sempre fechados e na rua, as amas passeavam os
meninos no passeio central debaixo das árvores. Tudo solene e formal, para o
lado das fachadas; mas nas traseiras, a vida animava-se entre a vizinhança, de
uma para outra varanda, de um para outro quintal.
Esta expansão urbana foi regrada
por um traçado rectangular, um «plano» bastante primário mas bem próprio da
época, traçado pelo Eng.° Ressano Garcia: são as Avenidas Novas. Eram, então,
real e evidentemente novas!
Deverá entender-se que esses
prédios, mais ou menos luxuosos, mais ou menos bem acabados (mas sempre «de
rendimento», note-se bem a expressão que então nasceu, porque é importante!)
constituem o que hoje se chamaria uma «renda vitalícia»: eram capitais postos a
render para assegurar às famílias dos seus donos uma renda, substituindo o
lucro industrial ou agrícola perturbado pela guerra e pelas transformações
sociais. As últimas beneficiarias dessas «rendas vitalícias» ainda existirão
por ali, olhadas impacientemente pelos netos herdeiros que não veem chegar a
hora em que a velha morra para passar o prédio a patacos vendendo-o a uma
imobiliária que deite aquilo abaixo e faça um bruto edifício para escritórios—e
fazer finalmente partilhas. É cruel, mas para quê escondê-lo? É assim e todos o
sabemos.
Ora, enquanto numa Lisboa ainda
próxima dos sarcasmos de Gervásio Lobato, uma «Lisboa sem camisa» mas ainda
cheia de «maluquinhas de Arroios» e comendadores a porem dinheiro a «render» em
prédios, alguém procurava (e conseguia!) o enriquecimento através do lucro. Era
uma corte de homens enérgicos, empreendedores, com o gosto do risco e a capacidade
de praticar um «capitalismo selvagem» e implacável — eram construtores civis
(na maior parte provenientes da região de Tornar, que sempre deu grandes homens
para a construção). A população de Lisboa, acostumada a uma inércia medíocre
(releia-se Eça...) assistia com pasmo e inveja ao enriquecimento desses homens
de proveniência modesta, adventícios e duros, e deu-lhes uma epiteto
pejorativo, que ficou: — os «patos bravos». (Mas ficou-lhes a dever a
construção de mais de um terço da Lisboa de então...) Um deles entrou até na
legenda popular com o cognome célebre de «O Barão da Caliça»!
E chamava-se-lhes também «os
gaioleiros de Tomar».
Ora esta designação é bem importante
e significativa.
De Tomar entende-se bem, pelo que
atrás ficou dito. Mas porquê «gaioleiros»?
Obviamente, porque os «gaioleiros»
construíam casas «de gaiola». Praticamente todos os edifícios «de rendimento»
desta época eram em gaiola».
O que é a «gaiola»?
Aqui, é preciso voltar um bocado
atrás na História e isso ficará para o próximo número.