terça-feira, 3 de janeiro de 1984

A literatura decadentista da decadente Lisboa

A novela, o conto e o romance sobretudo de escritores novos, em Lisboa, (e é em Lisboa que inegavelmente se situa o Grosso do fabrico literário nacional) tendem para o «decadente». É curioso. É até com certa constância.
 
A gente lê agora um magazine que esteja bem envelhecido, p. ex.° um «Noticias Ilustrado» ai de 1925, tem o enorme gozo de ver nos textos uma certa Lisboa Literária, e diverte-se à brava: é uma Lisboa cheia de perversões requintadas, ópio, cocaína, belas e enigmáticas espias eslavas seduzindo banqueiros e nobres, poderosos e incógnitos detentores de temíveis segredos, por entre Iangores de olheiras bistre e perfumadas cigarettes «bout-doré» orientais, futurísticos raios da morte, e viagens rapidíssimas de aeroplano e «express» de Paris. Champagne, automóveis «De Dion» e monóculos. Casacas. Palácios. Garçonniéres. Casinos.
Mas do outro lado da página, é uma outra Lisboa que nos aparece, com anúncios de chapeleiros e remédios para os calos, fotografias de ruas mal calçadas com poucos figurantes ridículos e pomposos; — como notícias de grande impacto cósmico e mundial, pouco mais longe se vai do que uma sacada na Rua do Patrocínio que caiu, matando um cão.
Talvez João Gaspar Simões, com um daqueles espantosos períodos do tamanho de uma coluna de jornal em que consegue sempre falar da «Presença» nem que seja numa crítica a um tratado de pesca desportiva, possa explicar bem isto: o que é que faziam Pessoa e Régio e Almada jovens no meio daquilo tudo, naqueles jornais nomes e nomes que hoje já esqueceram de todo (já esqueceram? Qual! Já não existem, de todo!). Ele viveu bem essa época — deve saber.
 
Quando eu estava na tropa, num tempo em Abrantes com outros milicianos chateados na pequena cidade parada, graciosa, antiga e pequena, costumava ir a um café onde havia um criado— rapaz novo, magro e olheirento— e todos nós o espicaçávamos para o ouvir. Era uma maravilha! Falava de modo a dar entender que estava ai apenas de passagem, por contrariedades temporárias da vida. O seu verdadeiro mundo era Paris e Berlim. Era familiar dos ambientes luxuosos, fatalmente perversos e deliciosamente corruptos do «Sphynx» e de outros altos templos do vício Internacional. Bebia (idealmente), champagnes raros por sapatos de «cocottes» nos intervalos de loucas corridas a Deauville e a Biarritz. Escolhia o seu ópio de entre os que lhe ofereciam príncipes orientais amigos, em fumoirs reservados e cultos.
É claro que o mais longe que tinha ido era a Lisboa; champagnes, talvez escorropichando o resto de algum espumantezinho ordinário dos brindes dos casamentos de província que o café servia. « Cocottes », só imagino que conhecesse as tristes mulheres pintadas e boçais dumas casas que atendiam ao fim de semana a soldadesca concentrada em Sta. Margarida. O resto era Paulo de Kock, Max du Veuzit, «et al».
 
Era patético.
E era simbólico.
 
Também o são, para mim, os inevitáveis decadentistas de serviço a cada uma das gerações alfacinhas: cosmopolitas, vividos, cínicos, já irremediavelmente «blasés» — verberando e denunciando a corrupção infernal e terminal de uma Lisboa irrecuperavelmente podre, a um tempo Sodoma e Gomorra, e Babilónia ainda por cima (mas contida substancialmente entre o Chiado, o Cais do Sodré e a Avenida de Roma). Mostram assim toda a sua inquietante e perturbadora modernidade.
O que é, é que avançam firmemente, compactamente, para a Academia das Ciências (Classe de Letras), os lugares de Director-Geral, os conselhos de administração dos órgãos de Comunicação Social, as embaixadas. Lá chegarão, sem pestanejar nem hesitar, como outros lá têm chegado— e não há mal nenhum nisso, ou pelo menos, já é hábito. Apenas para quem se der ao trabalho de seguir certos percursos pessoais, progressos e presentes, aparece o fascinante espectáculo do autor que se vai transformando na sua personagem: — e esse é um espectáculo digno de ser descrito pelo checo (não o Listopad; — o outro, o do Processo»).
 
Mas o que continua, imperturbável e imperturbada, é uma Lisboa nem mais nem menos corrupta do que outras cidades, quotidiana, cheia de bons malandros, refilona, heteróclita, parrana, golpista e pobretana, a ver passar os «angry young men» literatos de cada geração — e borrifando-se para eles.