quinta-feira, 29 de dezembro de 1983

JUVENTUDE, substantivo

É antipático da minha parte o que vou escrever. É contra o uso, é contra a corrente, é contra o senso vulgar, é contra uma certa moda do tempo. Paciência. É um hábito meu, o de chatear meio mundo e irritar o outro meio.
 
E a moda é esta:
Com o aumento da média de vida nos países desenvolvidos, o pluriemprego e a «rat-race» na meia-idade, a desagregação da família nuclear, a maior capacidade dada aos adolescentes de disporem de dinheiro, e ainda outras coisas, estabeleceu-se que há uma nova «classe» na sociedade: a «Juventude».
Assim. Sem mais. A JUVENTUDE.
Como se fosse uma «coisa», um grupo, uma colectividade. Ora isto é ao mesmo tempo muito perigoso em si mesmo, e sinal de que estão a acontecer coisas muito perigosas.
Porque juventude é um estado, uma circunstância e ainda por cima independente da vontade de cada um. Quando Senghor fala da «negritude», fala de um estado ou circunstância involuntária também, cujos problemas é preciso assumir. Mas a negritude é permanente: um negro velho, na Suécia, é tão negro como o era em novo, em Angola. Um jovem, jovem hoje em Lisboa, já não será um jovem daqui a 10 anos aqui mesmo em Lisboa, sem mudar de casa nem de amigos; quando for um velho, já foi jovem. Que tristeza que o óbvio esteja tão desvalorizado perante a convenção intelectual...
É evidente que outras divisões da sociedade, também acabadas em «ude», estão irremediavelmente fora de moda. Uma, bem gira, apesar de carregada de conotações espúrias que a tomam inaceitável (com horror!...) aos ideólogos «juventistas» era, por exemplo, a da «virtude». Cheira a puritanismo. Nem com pinças se lhe toca, ou só com uma forte dose imunizante de Freud. E no entanto, a «virtus» era, classicamente, romanamente, paganisticamente ou escolasticamente, o que separava uns dos outros: custava, exigia sacrifícios, ia-se adquirindo, aumentava com o tempo. Por exemplo, a «virtus» profissional, ou competência.
Agora quer-se impor a «juventus» como linha de demarcação — é automática, biológica, vai-se extinguindo em vez de aumentar, e extingue-se de vez, para sempre: triste linha de demarcação...
 
 
Toda uma subcultura está apostada em dar a este episódio curto do fluir da cadeia da vida, em resposta às tensões impostas pelo comércio e pelos media, uma vestimenta aceitável, temporal, aggiomata — e a involuntariamente deliciosa pedantaria da psicologia e psiquiatria da «juventude» tem, obviamente, também todo o interesse em colaborar na quase obscena «corporatização» das camadas mais novas da sociedade.
Um livro importante de E. Badinter, «L'Amour en Plus», mostrou (como ela mesma mostra ainda, na Sorbonne), quanto há de «fabricado», culturalmente, no amor materno e nas relações da idade adulta com a idade infantil; bem importante seria também estudar, objectivamente (dura palavra!...) quanto há de artificial, de voluntário, de comercial, de imposto, no conceito substantivo de «juventude».
Assim, o que importa entender como uma capacidade de inovar, de ver com frescura e inocência, de desmistificar, de andar pelos caminhos incómodos e vagos (gatos de telhado, perseguidores de estrelas e luas, perguntadores de perguntas difíceis, generosos dadores de si próprios...), é transformado num grupo que se estuda antropologicamente e sociologicamente como se uma nova Margaret Mead tratasse agora de novos indígenas das ilhas Trobriand em versão «jeans» e «walkman» — e pior do que isso, reconhecendo-lhes implicitamente o estatuto de uma afrontosa «identidade» de natureza.
Sociólogos e psicólogos afadigam-se, até sob a sombra majestosa da universidade, a interpretar, analisar e diagnosticar os comportamentos deste grupo, ajudando assim a reforçar nele uma consciência de existir como tal, que provavelmente não teria se não lhe fosse tão intensamente imposta (mas nem vale a pena falar nisso: certos pontos delicados da lógica da investigação cientifica, tais como o da acção do observador sobre o observado, estão também tremendamente fora de moda na prática das ciências sociais...).
 
Quero porém acreditar que é apenas inconsciente o tácito conluio que assim se forma entre os que dão à «juventude» o estatuto científico de «objecto», e os que exploram este «objecto» e os seus significados: a indústria, a publicidade, a moda. A subserviência babosa perante uma suposta criatividade e capacidade inovadora (que não tem enquanto tal: a inovação profunda e radical vem só com a maturidade), uma alegria e espontaneidade (que lhes são retiradas sistematicamente pela massificação eficazmente promovida), um futuro que não constrói (porque, naturalmente, ao apontá-lo como um estado teleologicamente ideal contraposto à idade madura, o complexo cultural-industrial que coisifica a juventude tira-lhe qualquer real incentivo para sair dela — mas isso parece estar para lá do alcance do entendimento dos ideólogos «juventistas»...); tudo isto é perfeitamente alarmante. Para senti-lo, é talvez preciso ter uma certa «juventude», mas outra, outra, não substantivada...
Sob o aspecto progressista, prafrentex e actualizado da bajulação da «corporação» juvenil esconde-se um espesso reacionarismo: a identidade de natureza proclamada para aquele grupo abastracto é eminentemente útil, (é o termo!) numa sociedade fragmentária, corporativa e segregada. Há já por esse mundo ministérios «Para a Juventude», tal como há ministérios para a Indústria e para os Novos Países Africanos. A «juventude» coisificada, é assim, na realidade, uma linha de montagem a prazo de velhos pré-fabricados para outras das modernas «corporações» instauradas: a da «terceira idade».
A coisificaçao ou substantivação da juventude, como a da feminilidade ou a da velhice, são o sinal dramático de que está gravemente doente outra coisa bem mais real, mais vital, mais simples, mais final — e que tem vários nomes possíveis e reconhecíveis, todos também fora de moda.
 
Pois bem; para ficarmos dentro do som das palavras, dar-se-lhe-á este:
«HUMANITUDE»