Não me refiro às ridículas
questões dos Jogos recentes e aos aspectos mistos de comício, «tattoo» e
apoteose de revista que têm tomado as suas cerimónias.
Refiro-me sim à realização
concreta de uma coisa a que se dá o nome ambíguo de «ideal olímpico». Devo
dizer que respeito muito os que professam esse (como qualquer outro) ideal; mas
não me coíbo de procurar dizer e ouvir o que cada um pensa: isso, é o meu ideal...
E penso que os Jogos Olímpicos são
estruturalmente condenáveis, perversos e de uma hipocrisia geral e beatamente
aceite. Afirmações violentas e porventura excessivas, que estarei pronto a
retirar se me forem demonstrados os erros dos seguintes pontos.
Vejamos:
— Os Jogos não são equitativos.
Pretende-se que os Jogos são
entre homens e mulheres que concorrem desportivamente, confrontando as suas
possibilidades pessoais.
Não são.
Na realidade são entre países, que concorrem usando os seus
atletas como armas ou trunfos. Um conhecimento mesmo elementar das
probabilidades e da teoria matemática dos jogos (ou o simples bom-senso)
mostraria que um confronto entre países com 300 ou 400 milhões de habitantes e
países com quinhentos ou setecentos mil habitantes, e em que a proporção entre
os respectivos números de praticantes é provavelmente ainda maior, é à partida,
um «jogo não-equitativo». Mesmo a nível individual, num país que tenha uma
milésima parte dos praticantes de outro, ao melhor praticante faltam as
condições técnicas, culturais e ambientais para ser considerado em igualdade
competitiva.
— O «ideal olímpico» do encontro
pacífico dos desportistas é puramente verbal. E falso.
Não me refiro ao profissionalismo
dos atletas, que é outra, e secundária questão. O espirito real dos Jogos é que
é, como foi sempre mesmo na sua origem clássica, um prolongamento ritualizado e incruento da competição
guerreira. Os Jogos Olímpicos são uma «guerra» figurada entre países através
dos seus «campeões»; (a propósito, leitor sabe qual é o significado da palavra
«campeão»?).
Na Crónica do Condestável,
Nun'Alvares, numa altura de indecisão na guerra com Castela, pede ao Rei autorização,
para «lançar um repto a João de Ançores para com ele se matar dez por dez».
Hoje, os dez «campeões» do Rei de Portugal e os dez «campeões» do Rei de
Castela não matariam: os dez portugueses, previamente seleccionados e tendo
feito os mínimos para a final, concorreriam com os espanhóis, provavelmente em
«pentatlo moderno», e os vencedores dariam a vitória ao País (dentro
certamente, e um espírito olímpico).
No outro dia, a Fernando Mamede,
que corre maravilhosamente, deu na gana fazer em Los Angeles uma sua peculiar
versão actualizada de Xenefonte («A Retirada dos Dez Mil»). Tanto bastou para
que o jornalismo, a opinião, as conversas de café e de autocarro tomassem essa
fraqueza do homem como uma traição, uma deserção, um opróbrio nacional.
Compreendi então de repente o que não tinha compreendido antes: o que tinha ido
a Los Angeles não era uma nossa delegação desportiva - era o «Corpo
Expedicionário Português», desonrando no campo de batalha a chama que arde
frente ao Túmulo do Atleta Desconhecido. («Os Lusíadas não se rasgam: lêem-se e
decoram-se» veio-me de súbito à memória, de certos cartazes que havia nas ruas
em 1960). Se a encantadora menina da Foz e os magníficos Lopes e Leitão não
tivessem salvado a «HONRA» nacional, seria preciso fazer uma grande
manifestação de desagravo no Rossio, uma velada na Sé, e despromover algum «general»
do desporto para exemplo.
— «Citius, Altius, Fortius»?
Mais depressa, mais alto, com
mais força? É uma parte do «ideal» desportivo — a superação de si mesmo, o
vencer dos limites, o prazer do autodomínio, do esforço criador e enriquecedor,
da saúde cultivada e gozada, da participação na elevação colectiva.
O espírito «desportivo» é:
— Hoje consegui 5 minutos e
trinta segundos; conseguirei amanhã 5 minutos e vinte segundos?
O espirito «olímpico» é:
— O cabrão do finlandês já
conseguiu 5 minutos e vinte segundos e vai ao ouro; conseguirei eu ir á prata
com 5 minutos e vinte segundos, e lixar o mexicano que com 5 e vinte e cinco o
mais que pode é ir ao bronze?
Quando «Fortius, Altius, Citius»
é conseguido à custa de anabolizantes e treinos ao limite, de uma «pecuária»
(se ainda não de uma engenharia genética) criando animais de competição de raça apurada, cientificamente — animais
que arrastarão o resto da sua curta vida cheios de dores, mazelas e
incapacidades; quando as tecnologias suprem ou suplementam decisivamente as capacidades humanas (o leitor já teve na mão uma
pistola olímpica de tiro rápido, que é uma das maiores maravilhas da mecânica
de precisão que conheço? sabe a diferença de velocidade entre um barco a remos
de madeira e um feito em fibra de carbono, calculado hidrodinâmicamente em computador?
As antigas e as novas velas especiais dos «stars»?, etc., etc.). Quando é
assim, vá-se que longe se está do conceito antigo e nobre do homem que mede as
suas próprias forças, nu, com as do outro (correndo, saltando, nadando,
atirando o mesmo objecto). Se essas formas nobres e simples da competição já
não são só uma minoria dentro da grande bagunça olímpica e até o «wind-surf» já
é olímpico — o que é que falta para o «delta-plane»? O pára-quedismo? O
motocross? O automobilismo de Fórmula um? O tiro pacífico com óbus olímpico de
10,5, granada «standard», a 10 Km em três séries à destruição? (o alvo para
pistola olímpica de tiro rápido é constituído por quatro silhuetas humanas
estilizadas; o alvo para óbus olímpico poderia ser uma aldeia estilizada no
terreno...).
— O encontro fraterno entre
desportistas?
Os Jogos Olímpicos como um
colossal «jamboree» de escuteiros, entre cantares, abraços e troca de endereços
para correspondência futura, base de novas e sólidas amizades — é o que parece quererem
dizer os discursos bacocos e cheios de lugares comuns que costumam abrir estes
espectáculos (alguém já os ouviu com atenção, por acaso?).
Mas, inflexivelmente, em cada
prova haverá depois uma dura realidade: três, só três, sobem ao pódio por entre
aplausos, «flashes», bandeiras, hinos e cumprimentos de dignitários — uma
glória um pouco efémera mas intensa, mundializada, luminosa. O quarto, e os
seguintes, separados talvez por umas fracções de segundo, uns centímetros ou
uns gramas, descerão ao limbo neutro da não-existência, à zona cinzenta do anonimato
e do esquecimento — não são ninguém. E no entanto eles dedicaram-se e sofreram
tanto como os que estão no pódio, venceram intermináveis e difíceis
eliminatórias, são praticamente equivalentes e talvez até melhores em certas
condições — mas uma fracção de segundo, uns gramas ou uns centímetros separam três, apenas, da imensa massa dos
praticantes com valor, «Vae victis». Maravilhosa base para a fraternidade
olímpica!...
— E os nacionalismos?
Numa evolução histórica da
Humanidade que deveria apontar idealmente para o desaparecimento do Estado e
dos estados, para o abater das fronteiras, pata a comunhão das raças, o «ideal
olímpico» materializa-se no chauvinismo do confronto entre representações
nacionais, entre blocos, entre nações e naçõezecas de opereta ou de
conveniência. E não falta quem procure abjectamente deduzir de uns segundos e
centímetros a mais ou a menos a excelência de um regime ou sistema político,
justificar ou infirmar as virtudes de uma ditadura.
Ao longo das edições dos Jogos,
só uma coisa fica demonstrada cabalmente — e essa todo o mundo a sabe desde
sempre, desde Vladivostok até S. Francisco e as Ilhas Comores: que quando quer,
o macaco grande bate no macaco pequeno.
Mas a longa e penosa luta da
Humanidade a que se dá o nome de processo de civilização, consiste em dar ao macaco
pequeno os meios de não apanhar sempre pancada do macaco grande. Os defensores
do «ideal olímpico» (e lembro-me do rubicundo e jovial dr. José Pontes que
durante tanto tempo o personificou em Portugal, e que mo contava como um conto
de fadas enquanto procurava corrigir com massagens as minhas pernas de criança
não fadada para o olimpismo), continuam a falar nos resultados para a paz e entendimento
entre os povos que se extraem dos Jogos.
Resultados?
Mostrem-nos.