«... Mas, se ter preciso, nos
quartéis, os militares vão passar a consumir mais ovos.»
(Vice-primeiro-ministro, na Feira
da Agricultura, 10/6/84)
Não pode deixar de impressionar pela
simplicidade e pela lucidez aquilo que parece ser uma das medidas do Plano de Recuperação
Económica, anunciada discretamente já, para testar a aceitação futura daquele
grande pacote legislativo, conhecido aqui em Campolide por PREC (um Plano de
Recuperação Económica, do Caraças!).
É tão simples!
Os economistas queixam-se da
crónica falta de dimensão do mercado português; da dificuldade de absorver os excedentes,
quando os há; da resistência à estabilização dos preços; da falta de base de
mercado que assegure os investimentos e permita depois expandir a produção para
concorrer no mercado externo, etc. — não são coisas do capitalismo antigo, é
tudo doutrina moderna: Sraffas’s, Robinson's, Saran's, tudo fino...
Ora os consumos da tropa, em
tempo de paz, não fazem muito sentido se servirem só para engordar os negócios
dos «marchands de canons» — qualquer pacifista sabe até de cor as continhas
todas (no estilo de quantas escolas primárias se poderiam fazer com o que se
gasta com um avião a jacto destes que nos impingem já usados, quantos leitos de
hospital se conseguiriam pelo preço de um submarino mesmo não atómico, etc.).
Mas a grande guerra dos nossos dias é a guerra económica e as nossas F.A.,
sempre prontas a servir a Pátria com sacrifício, não deverão esquivar-se a esta
nova e gloriosa função que se avizinha: — a de mercado consumidor cativo.
Aproximam-se grandes operações e
batalhas — a dos ovos é apenas uma escaramuça, ainda.
Veja-se: há problemas com os
excedentes de vinho para a entrada na CEE. Que fazer? Arrancar as vinhas? Não:
o país espera que o Exército e a Marinha cumpram o seu dever, aí à razão de uns
trinta litros por semana por praça, sargento e oficial (a Aviação, dá-me ideia
que não deveria envolver-se neste caso especial). Mas a Força Aérea não poderá
eximir-se a enfrentar a parte que lhe cabe no concentrado de tomate e nas
conservas de sardinha.
Penso até, que, em rigor, isto é
matéria a que o EMGFA deve dar a sua atenção: o Quartel-Mestre General das F.A.
deveria estudar os aspectos estratégicos do Anexo P do Acordo com a Espanha — é
aí, e não em parvoíces acerca de quem é que deve mandar na marinha ibérica que
se vão decidir os grandes problemas dos dois povos peninsulares.
Todos os sectores da economia
esperam das F.A. o que não tem conseguido da paisanada. Leio agora, por
exemplo, que a actividade dos espectáculos se considera em grave crise de
público. Salas às moscas. Sessões canceladas por falta de espectadores. Ora, à
média de duas companhias de infantaria por sala e por sessão, a exibição
estaria assegurada e a função do IPC reencontraria novo alento no apoio à
produção nacional. Os comandos e os paras, que são altamente operacionais e
rápidos, deveriam ter até companhias de emergência para acudir à última hora a
concertos, recitais, ópera e bailado.
Além do mais, passaríamos a ter
uma tropa culta, satisfeita, e bem alimentada - é só vantagens!...
E bem alojada! Porque a indústria
do móvel nortenho poderá mais tarde ou mais cedo vir a ter a possibilidade de
substituir os larguíssimos milhares de camas de ferro das casernas por algo de
melhor, em estilo D. João V ou rústico antigo, que não encontre colocação no
estrangeiro. E quem sabe se quartéis novos, decentes, de 12 pisos, 3 a 4
assoalhadas, todo o conforto moderno, óptimos acabamentos, facilidades de pagamento
venha ver hoje mesmo, como a construção civil sabe fazer! Isto é uma revolução,
isto é um mundo de possibilidades abertas à criatividade e à iniciativa!
Mais uma vez se irá dever à tropa
a salvação da identidade nacional, agora nas batalhas incruentas mas decisivas
do comércio interno, da balança de pagamentos e do multiplicador do investimento.
Isto, entenda-se! Isto, e não
outras patetices que por ai têm andado à solta, é que será verdadeiramente
«Libertar a sociedade civil (a "de consumo")».
Mas foi precisa coragem para o
pensar e pôr em prática.