quarta-feira, 4 de julho de 1984

Multiplicador militar de investimento



«... Mas, se ter preciso, nos quartéis, os militares vão passar a consumir mais ovos.»
(Vice-primeiro-ministro, na Feira da Agricultura, 10/6/84)
 
Não pode deixar de impressionar pela simplicidade e pela lucidez aquilo que parece ser uma das medidas do Plano de Recuperação Económica, anunciada discretamente já, para testar a aceitação futura daquele grande pacote legislativo, conhecido aqui em Campolide por PREC (um Plano de Recuperação Económica, do Caraças!).
 
É tão simples!
 
Os economistas queixam-se da crónica falta de dimensão do mercado português; da dificuldade de absorver os excedentes, quando os há; da resistência à estabilização dos preços; da falta de base de mercado que assegure os investimentos e permita depois expandir a produção para concorrer no mercado externo, etc. — não são coisas do capitalismo antigo, é tudo doutrina moderna: Sraffas’s, Robinson's, Saran's, tudo fino...
 
Ora os consumos da tropa, em tempo de paz, não fazem muito sentido se servirem só para engordar os negócios dos «marchands de canons» — qualquer pacifista sabe até de cor as continhas todas (no estilo de quantas escolas primárias se poderiam fazer com o que se gasta com um avião a jacto destes que nos impingem já usados, quantos leitos de hospital se conseguiriam pelo preço de um submarino mesmo não atómico, etc.). Mas a grande guerra dos nossos dias é a guerra económica e as nossas F.A., sempre prontas a servir a Pátria com sacrifício, não deverão esquivar-se a esta nova e gloriosa função que se avizinha: — a de mercado consumidor cativo.
Aproximam-se grandes operações e batalhas — a dos ovos é apenas uma escaramuça, ainda.
Veja-se: há problemas com os excedentes de vinho para a entrada na CEE. Que fazer? Arrancar as vinhas? Não: o país espera que o Exército e a Marinha cumpram o seu dever, aí à razão de uns trinta litros por semana por praça, sargento e oficial (a Aviação, dá-me ideia que não deveria envolver-se neste caso especial). Mas a Força Aérea não poderá eximir-se a enfrentar a parte que lhe cabe no concentrado de tomate e nas conservas de sardinha.
Penso até, que, em rigor, isto é matéria a que o EMGFA deve dar a sua atenção: o Quartel-Mestre General das F.A. deveria estudar os aspectos estratégicos do Anexo P do Acordo com a Espanha — é aí, e não em parvoíces acerca de quem é que deve mandar na marinha ibérica que se vão decidir os grandes problemas dos dois povos peninsulares.
Todos os sectores da economia esperam das F.A. o que não tem conseguido da paisanada. Leio agora, por exemplo, que a actividade dos espectáculos se considera em grave crise de público. Salas às moscas. Sessões canceladas por falta de espectadores. Ora, à média de duas companhias de infantaria por sala e por sessão, a exibição estaria assegurada e a função do IPC reencontraria novo alento no apoio à produção nacional. Os comandos e os paras, que são altamente operacionais e rápidos, deveriam ter até companhias de emergência para acudir à última hora a concertos, recitais, ópera e bailado.
Além do mais, passaríamos a ter uma tropa culta, satisfeita, e bem alimentada - é só vantagens!...
E bem alojada! Porque a indústria do móvel nortenho poderá mais tarde ou mais cedo vir a ter a possibilidade de substituir os larguíssimos milhares de camas de ferro das casernas por algo de melhor, em estilo D. João V ou rústico antigo, que não encontre colocação no estrangeiro. E quem sabe se quartéis novos, decentes, de 12 pisos, 3 a 4 assoalhadas, todo o conforto moderno, óptimos acabamentos, facilidades de pagamento venha ver hoje mesmo, como a construção civil sabe fazer! Isto é uma revolução, isto é um mundo de possibilidades abertas à criatividade e à iniciativa!
Mais uma vez se irá dever à tropa a salvação da identidade nacional, agora nas batalhas incruentas mas decisivas do comércio interno, da balança de pagamentos e do multiplicador do investimento.
 
Isto, entenda-se! Isto, e não outras patetices que por ai têm andado à solta, é que será verdadeiramente «Libertar a sociedade civil (a "de consumo")».
Mas foi precisa coragem para o pensar e pôr em prática.