sábado, 28 de julho de 1984

As línguas portuguesas

Tem-se assistido ultimamente a um renovar de esforços para a defesa da língua portuguesa; esse bem inestimável, essa parte excelsa da nossa herança cultural. Apareceu até recentemente uma nova gramática, feita por quem melhor do que ninguém a poderia fazer: o prof. Lindley Cintra.
Mas a gramática de que língua portuguesa?
É que há várias, já, inteiramente diferentes e exóticas. Não me refiro às versões tropicais — essas são-nos familiares e lindíssimas. Refiro-me às variantes «exóticas» faladas em Portugal. Vejamos:
 
Por exemplo — tome-se este primeiro trecho do velho Pe. António Vieira: (...)
He a guerra aquelle monstro que se sustenta de fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. He a guerra aquella tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as villas, os castellos, as cidades e talvez em hum momento sorve os reinos e monarchias inteiras. He a guerra aquella calamidade composta de todas as calamidades, e em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema; nem bem que seja próprio e seguro (...)
Magnífico! Mesmo na ortografia antiga, soa a português tal como o conhecíamos: ritmo perfeito, sonoridade lindíssima, expressão exacta e imediata, económica.
 
Mas imaginemos agora o mesmo trecho, se for escrito em língua «de intelectual»;
(...) Num sentido à partida carregado de conotações monstricas, a guerra constitui-se como um ser de construção/destruição impondo-se como objecto de uma antinomia entre o consumir e o fartar cuja onticidade se resolve finalmente apenas na negação. Toda a guerra não será sempre guerra de si mesma? Esta é a questão tempestual (terrestre?) rnediatizada pela qual se destroem (des-troem) castelos (o «enischlossung» Horst-bergmanniano, reminiscente da tentativa, «déchetelisante» de Boutron-Lacroix?). De facto toma-se aqui de uma clareza evidente que toda a calamidade (ausência/presença/negação) é sempre calamidade de si mesma, constituindo-se (codificando-se) no mal que se teme/desteme/padece apenas como e enquanto valor próprio/seguro (...)
 
Mas se for escrita em língua de «tecnocrata», dará coisas como esta:
(...) A operação conflitual Guerra («War, in Monster form»), ou WIMF) numa óptica macro de médio prazo face ao desinvestimento em fazendas, sangue e vidas, equaciona-se num processo sequencial não-estabilizável em termos de consumo-fartura. Numa óptica de tempestualidade terrestre a WIMF pode nulificar instantaneamente um mix determinado de campos, casas, vilas, castelos, cidades, reinos e monarquias inteiras. A WIMF é factorializável em calamidades que se temem ou padecem, face a uma alternativa analisável numa óptica de custos-benef icios microface à valoração dos parâmetros inqualificáveis na óptica do próprio e seguro (...)
 
Há os médicos. Em «língua de médico», porventura soaria assim.
(...) a guerra, sob forma teratológica, metaboliza tecidos duros (fazendas) e hematólicos, e mesmo em regime de sobrealimentação não chega a eliminar a situação de bulimia carencial. Campos, vilas, castelos e cidades fazem um processo degenerativo atingindo situações terminais quando submetidos a um ambiente de guerricidade aguda. Reinos e monarquias inteiras podem mesmo fazer processos terminais instantâneos não remissivos. Em processo acumulativo de disfunção (calamidades complexas exo e endomórficas) os síndromas fisiológicos e neuro psicológicos manifestam-se sob a forma de «stress» e fazem manifestações secundárias pré-paranoicas associadas a formas esquizoides de perda de propriedade e segurança (...)
 
É assim.
Ía também a tentar mostrar o mesmo trecho em «língua de político». Mas, atendendo ao Projecto de Lei em discussão na Assembleia, parece-me mais «seguro» não o fazer. É preciso começar a ter cuidado com a língua.

Vou começar a estudar, prudentemente, a outra gramática, a «língua dos advogados» e da Polícia, pelo sim pelo não...