Tem-se assistido ultimamente a um
renovar de esforços para a defesa da língua portuguesa; esse bem inestimável, essa
parte excelsa da nossa herança cultural. Apareceu até recentemente uma nova
gramática, feita por quem melhor do que ninguém a poderia fazer: o prof.
Lindley Cintra.
Mas a gramática de que língua
portuguesa?
É que há várias, já, inteiramente
diferentes e exóticas. Não me refiro às versões tropicais — essas são-nos
familiares e lindíssimas. Refiro-me às variantes «exóticas» faladas em
Portugal. Vejamos:
Por exemplo — tome-se este primeiro
trecho do velho Pe. António Vieira: (...)
He a guerra aquelle monstro que
se sustenta de fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome,
tanto menos se farta. He a guerra aquella tempestade terrestre, que leva os
campos, as casas, as villas, os castellos, as cidades e talvez em hum momento
sorve os reinos e monarchias inteiras. He a guerra aquella calamidade composta
de todas as calamidades, e em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se
não tema; nem bem que seja próprio e seguro (...)
Magnífico! Mesmo na ortografia
antiga, soa a português tal como o conhecíamos: ritmo perfeito, sonoridade
lindíssima, expressão exacta e imediata, económica.
Mas imaginemos agora o mesmo
trecho, se for escrito em língua «de intelectual»;
(...) Num sentido à partida
carregado de conotações monstricas, a guerra constitui-se como um ser de
construção/destruição impondo-se como objecto de uma antinomia entre o consumir
e o fartar cuja onticidade se resolve finalmente apenas na negação. Toda a
guerra não será sempre guerra de si mesma? Esta é a questão tempestual
(terrestre?) rnediatizada pela qual se destroem (des-troem) castelos (o
«enischlossung» Horst-bergmanniano, reminiscente da tentativa, «déchetelisante»
de Boutron-Lacroix?). De facto toma-se aqui de uma clareza evidente que toda a
calamidade (ausência/presença/negação) é sempre calamidade de si mesma,
constituindo-se (codificando-se) no mal que se teme/desteme/padece apenas como
e enquanto valor próprio/seguro (...)
Mas se for escrita em língua de
«tecnocrata», dará coisas como esta:
(...) A operação conflitual
Guerra («War, in Monster form»), ou WIMF) numa óptica macro de médio prazo face
ao desinvestimento em fazendas, sangue e vidas, equaciona-se num processo
sequencial não-estabilizável em termos de consumo-fartura. Numa óptica de
tempestualidade terrestre a WIMF pode nulificar instantaneamente um mix determinado
de campos, casas, vilas, castelos, cidades, reinos e monarquias inteiras. A
WIMF é factorializável em calamidades que se temem ou padecem, face a uma
alternativa analisável numa óptica de custos-benef icios microface à valoração
dos parâmetros inqualificáveis na óptica do próprio e seguro (...)
Há os médicos. Em «língua de
médico», porventura soaria assim.
(...) a guerra, sob forma teratológica,
metaboliza tecidos duros (fazendas) e hematólicos, e mesmo em regime de sobrealimentação
não chega a eliminar a situação de bulimia carencial. Campos, vilas, castelos e
cidades fazem um processo degenerativo atingindo situações terminais quando
submetidos a um ambiente de guerricidade aguda. Reinos e monarquias inteiras
podem mesmo fazer processos terminais instantâneos não remissivos. Em processo
acumulativo de disfunção (calamidades complexas exo e endomórficas) os
síndromas fisiológicos e neuro psicológicos manifestam-se sob a forma de «stress»
e fazem manifestações secundárias pré-paranoicas associadas a formas esquizoides
de perda de propriedade e segurança (...)
É assim.
Ía também a tentar mostrar o
mesmo trecho em «língua de político». Mas, atendendo ao Projecto de Lei em
discussão na Assembleia, parece-me mais «seguro» não o fazer. É preciso começar
a ter cuidado com a língua.
Vou começar a estudar, prudentemente,
a outra gramática, a «língua dos advogados» e da Polícia, pelo sim pelo não...