segunda-feira, 11 de junho de 1984

Ar condicionado (2)

Na primeira parte deste escrito viu-se como se pensa que pode ser atribuído ao teor de partículas ionizadas no ar ambiente parte do seu poder germicida e tonificante.
 
Tive uma inesperada revelação de que deve ser de facto assim, através de uma conversa com o director de um nosso arquivo nacional, que, sem saber nada disto, me confiava uma sua observação preocupante: tinha notado, ao longo do tempo, que espécies bibliográficas antigas, incunábulos e iluminuras, estavam a degradar-se relativamente mais depressa desde que acolhidos a instalações modernas do que nos tempos em que jazeram entre paredes conventuais ou velhos edifícios camarários (isto, evidentemente, descontando os vandalismos, as humidades, o fogo — a esses nada resiste...). Ocorreu-me de repente perguntar-lhe se, por instalações modernas entendia também as que já tinham ar condicionado; depois de certa reflexão, admitiu que sim, apesar de não ver nisso qualquer relação. Não seria elegante citá-lo aqui, mesmo porque as suas observações eram pessoais, estimadas e sem base de rigor científico — e trazer neste momento a lume aquela sua preocupação, sem sua autorização seria melindroso por várias razões. Mas pareceu-me claro que se tratava de que o ar condicionado, neutro, morto, inerte, não tinha as capacidades germicidas que se encontravam no ar circulando por entre os espessos muros das construções antigas.
 
Dirão os garbosos peritos que nos fabricam o ar encanado que, quer pela filtragem electroestática rigorosa, quer pela passagem por zonas de raios ultravioletas altamente bactericidas, o ar que vem do exterior é purificado e esterilizado, ficando assim livre dos microrganismos que provocam alergias e afecções várias. Assim é, assim é. Assim é. Assim é, em relação ao ar exterior, e nos primeiros tempos das instalações. Mas acontece o seguinte: o ar condicionado é, não só desumidificado como também depois reumidificado até ao grau exacto desejado — através de pequenos repuxos ou passagem sobre têxteis molhados: aí desenvolvem-se fungozinhos sornas e mal intencionados, que são lançados vivinhos da costa a 3m/segundo para dentro das salas. Então a dactilógrafa espirra, o contabilista fica pior da asma, atiça-se a alergia do chefe de secção — até à próxima limpeza dos filtros e humidificadores.

Há depois o ruído.
 
Se o ar sai das grelhas de insuflação aí a mais de uns três metros por segundo, faz um característico ruído sibilante, baixinho, antipático. As tubagens, por muito bem tratadas que sejam acusticamente, são tubagens e comportam-se como tubagens que são, isto é: como os tubos dos órgãos ou das flautas — conduzem as ondas sonoras dando assim a todos o privilégio de ouvir o som longínquo das pás das turbinas (já muito abafado, evidentemente).
Mas a música do órgão de vento mecânico canalizado toma-se mais rica se se produzirem – harmónicas, devido a pequenas diferenças de velocidade nas turbinas de insuflação e aspiração. Então o som embalador, ondulante, rítmico, dá as mais belas das dores de cabeça ao fim do dia — é a altura em que o programador erra o seu Cobol, o guarda-livros não acerta o Deve com o Haver e o Director Geral se zanga com o Secretário Geral (mas todos, todos, a humidade e temperatura constante, teoricamente confortáveis à brava).
O pior é que podem até nem estar a dar pelo que lhes acontece: o nível de ruído é normalmente muito baixo, e no seu espectro, misturados com os sons da faixa audível, abundam os deletérios infra-sons.
 
Por tudo isto, há pelo menos uma vantagem naquelas instalações de unidades simples que se montam por baixo das janelas, em relação aos grandes sistemas centralizados, e é de ordem estritamente pessoal, não técnica: é a de que sempre se lhes pode dar um pontapé retaliador, saboroso e satisfatório — ou pelo menos, tomar uma daquelas decisões que marcam toda a superioridade do arbítrio humano — «Desliga-me lá aquela merda, que já não posso mais!»
 
Então, quando o infernal motorzinho pára, depois de alguns soluços, e fica só o ruído de um pingo ritmado e lento—que paz! Que sossego! Que bem-estar!